Irene BORGES-DUARTE IIIº Congresso Luso-Brasileiro de Fenomenologia - ACTAS 1 G
Irene BORGES-DUARTE IIIº Congresso Luso-Brasileiro de Fenomenologia - ACTAS 1 GESTELL E GESTALT. FENOMENOLOGIA DA CONFIGURAÇÃO TÉCNICA DO MUNDO EM HEIDEGGER Irene BORGES-DUARTE Universidade de Évora RESUMO: No Aditamento a “A Origem da Obra de Arte”, Heidegger esclarece o termo Gestell, usado para designar a essência da técnica, relacionando-o com o sentido grego de morphé e o germânico de Gestalt. Com base nesta tríplice implicação, sob a sombra duma quarta – a da noção kantiana de esquema –, o presente trabalho procura desvelar o sentido fenomenológico da questão heideggeriana da técnica, atendendo ao seu confronto com a concepção morfológica de Ernst Jünger. PALAVRAS-CHAVE: Gestell – Gestalt – Morphé – Esquema ABSTRACT: Gestell and Gestalt. The phenomenology of the world’s technical configuration in Heidegger. In the Afterword to his “The Origin of the Work of Art”, Heidegger explains the meaning of the word “Gestell”, therein used to express the essence of the Technic, and he does so by relating it to the Greek sense of morphé and its German correspondent, Gestalt. Based on this triple association, and under the shadow of a fourth – the Kantian notion of scheme – this essay attempts at uncovering the phenomenological meaning of Heidegger’s approach to the issue of Technic, confronting it with Ernst Jünger’s morphological approach to the same topic. KEYWORDS: Gestell – Gestalt – Morphé – Scheme Irene BORGES-DUARTE IIIº Congresso Luso-Brasileiro de Fenomenologia - ACTAS 2 Num trabalho anterior1, dediquei a minha atenção a explicitar o sentido do tardio uso heideggeriano do termo Gestell para dizer a essência da técnica moderna. Uma referência aparecida no “Aditamento” a “A origem da obra de Arte”, ainda mais tardio2, deu-me a chave que, desde então, orienta a minha leitura: “Durch das so gedachte Ge-stell klärt sich der griechische Sinn von morphe als Gestalt. Nun ist in der Tat das später als ausdrückliches Leitwort für das Wesen der modernen Technik gebrauchte Wort ‘Ge-stell’ von jenem Ge-stell her gedacht (nicht vom Büchergestell und der Montage her).”3 Vou partir daquele trabalho, a cujas linhas mestras aludirei, mas para mostrar, complementarmente, algo que então deixei em aberto: 1. que a escolha do termo Gestell tem uma razão fenomenológica – se por fenomenologia entendemos, com Heidegger, o deixar aparecer na articulação da palavra-discurso o que, mostrando-se, também se dissimula; 2. que essa fenomenologia do que vem à linguagem implica não só uma exploração da “origem” etimológica, mas também um ter em conta da pregnância histórica (isto é, no seu devir) do sentido nelas guardado; 3. que, por isso mesmo, a proximidade etimológica entre Gestell e Gestalt remete para um contexto do pensamento alemão - que através da ideia de “morfologia” liga Goethe a Spengler e a Jünger, além de estar presente na Gestaltpsychologie; 4. que, finalmente, é essa referência que constitui o traço dominante da compreensão do fenómeno da técnica como “constelação” (Konstellation): metáfora cósmica da relação aí-ser na era tecnológica à escala planetária. 1 Borges-Duarte, I.: "La tesis de Heidegger sobre la técnica", Anales del Seminario de Historia de la Filosofía (Madrid), 10 (1993), 119-154. 2 O texto de “Die Frage nach der Technik” (doravante, FnT) foi publicado em 1954, embora proceda de uma conferência de 1949. O Aditamento a “Der Ursprung des Kunstwerkes” (doravante, Ukw) foi, segundo o próprio Heidegger, escrito em 1956, apesar de só ter sido dado a conhecer em 1960, na ed. Reclam. Entre 1954 e 1955, escreve e publica “Über die Linie”, no Festschrift para Jünger. As anotações sobre “Gestalt” em Zu Ernst Jünger, Gesamtausgabe (doravante, GA) Bd. 90 (ed. Trawny) estão registadas como procedentes de 1954. Os restantes manuscritos incluídos em GA 90 estão datados de 1934-1954, 1940, 1939. 3 Heidegger, M: Holzwege, GA 5, ed. De F.-W. v. Hermann. Frankfurt, Klostermann, 1977, p. 72. Ed. pt coordenada por I. Borges-Duarte: Caminhos de Floresta, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2002 (22012). Irene BORGES-DUARTE IIIº Congresso Luso-Brasileiro de Fenomenologia - ACTAS 3 Concluirei com a defesa, sobre essa base, da necessidade de integrar a compreensão heideggeriana da técnica não apenas num horizonte ontopolítico - em que não é desabitual desenvolvê-lo, sendo, porém, óbvio -, mas também, e sobretudo, num contexto ontopoiético de projecção existenciária do novum, metamórfico na plenitude e autenticidade da sua possibilidade. Só neste sentido, pode entender-se que Heidegger considere Ge-Stell como uma fulguração pregnante do Ereignis, isto é, como modalidade apropiada de configuração do ser no mundo. § 1. A fenomenologia heideggeriana da atitude técnica Desde Ser e Tempo (1927) que a experiência fáctica do ser aparecia, à partida e a maior parte das vezes, na direcção do estar-à-mão (Zuhandenheit), que a interrogação pragmática da labuta quotidiana ocupada com as coisas - o besorgender Umgang - introduzia com um tácito Wozu ou Womit: para que serve isto?, com quê posso conseguir aquilo? Dir-se-ia, pois, que a tematização heideggeriana da conjuntura (Bewandnis), em que as coisas se nos presentificam no mundo da vida, seria já a antecâmara de uma concepção fenomenológica da Técnica. Contudo, não foi assim. Quando Heidegger, muito mais tarde (1954), expõe em redacção definitiva a sua “Pergunta pela Técnica”4, aquele primeiro esboço do que é o Umwelt do exercício quotidiano do fazer pela vida, com os outros, à beira dos entes - a que, assim, dá sentido enquanto tal ou tal coisa -, não poderia integrar nada mais que a abordagem preliminar da facticidade existencial do Dasein. Este move-se, efectivamente, no seu pequeno mundo envolvente, como numa bem apetrechada oficina. Esta forma primeira de relação ao meio é alheia ao salto e mutação histórica que, na época moderna, significará o consumar-se de uma “maquinação” da ratio reddenda, que terminará por mercantilizar definitivamente o mundo à escala planetária, fazendo-o mirrar em mero armazém (de víveres, de matérias 4 Die Frage nach der Technik in Heidegger, M.: Vorträge und Aufsätze, Pfullingen, Neske, 1954. Hoje também em GA 7: Vorträge und Aufsätze, ed. F.-W. von Herrmann, Frankfurt, Klostermann, 2000. Irene BORGES-DUARTE IIIº Congresso Luso-Brasileiro de Fenomenologia - ACTAS 4 primas, de fontes de energia, de mão de obra), em que as coisas e os humanos perderão aquele seu carácter inicial de “coisas” e de “humanos”, que lhes pertencia originariamente pela autenticidade da relação afectuosamente inteligente em que eram acolhidos e nomeados no “aí” de uma morada humana. Esta transformação da relação imediata aos entes, à beira dos quais residimos, não parecia previsível a partir das coordenadas hermenêuticas avançadas em Ser e Tempo. Considero, contudo, que aquela experiência inicial, eco-lógica e artesanal, deixar-se-ia ainda traduzir naquilo que Heidegger caracterizará, em “Die Frage nach der Technik”, como concepção “instrumental” e “antropológica” da técnica, cuja verdade inicial soava na terminologia do “à-mão” ou Zuhandenheit. No entanto, esse uso que havia cunhado o sentido originário das coisas transformou- se, no caminho facticamente vencido, num abuso das coisas, que as reduziu a mero instrumento ao serviço da sociedade e civilização. Assim, a instrumentalização antropomórfica do que há à-mão deixou à deriva o ser do que há que pensar: o que é a “técnica” na sua essência?, como se dá o salto do uso ao abuso “técnico” dos entes? § 2. À procura de uma definição fenomenológica O texto de FnT começa com uma crítica do alcance e limites do que chama definição instrumental e antropológica da técnica. Segundo esta leitura generalizada, a técnica é um “fazer humano” que constitui o “meio” de alcançar “fins” individual e socialmente desejáveis. Esta definição é, diz Heidegger, “correcta”, pois corresponde ao que, humanamente e do ponto de vista do humano, se procura no agir e conviver quotidiano residindo no mundo à beira dos entes. É válida porque descreve uma actividade finalista: quer no sentido do Womit-Wozu, de que Heidegger falava em Ser e Tempo, quer no sentido da auto-interpretação moderna do homem como “fim em si” e de tudo quanto o rodeia como “meio” técnico-prático para a sua auto-realização plena. “A definição instrumental da técnica é até tão tremendamente correcta – permitam-me que traduza aqui assim unheimlich richtig – que também é certa para a técnica moderna, de que se diz com bastante razão, Irene BORGES-DUARTE IIIº Congresso Luso-Brasileiro de Fenomenologia - ACTAS 5 que possui algo absolutamente diferente e, portanto, novo, relativamente à técnica antiga do artesão.”5 Continua, pois, a ser correcta - es bleibt richtig. No entanto, este acerto na determinação falha, segundo Heidegger, na medida em que esquiva o cerne da questão, constituído pelo des-encobrir-se aletheiológico do modo “técnico” de mostrar-se do ser, no seu “aí” mundano. Se, do ponto de vista antropológico, a técnica é um meio para um fim; do ponto vista ontológico, é um produzir, um agir que causa o aparecimento de algo que, se assim não fosse, não teria lugar. E é neste ponto que o texto de FnD introduz uma segunda definição, que, ampliando o horizonte visado na pergunta e, portanto, tornando esta menos estrita ou precisa, permite um desvio anfibológico e descontextualizante conducente a uma inesperada clareira: “a técnica é uma forma de descobrir” (Entbergen)6, isto é, “tem e exerce a sua essência (west) no reino (Bereich) em que o descobrir e o uploads/Ingenierie_Lourd/ gestell-e-gestalt-forma.pdf
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