Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 3 A FORMAÇÃO DO LÉXICO ROMÂNICO E O MITO D
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 3 A FORMAÇÃO DO LÉXICO ROMÂNICO E O MITO DA ORIGEM HÍBRIDA DO INGLÊS Miguel Afonso Linhares (IFRR) afonsolinhares@hotmail.com 1. Introdução O estudo de metaplasmos tem sido uma das atividades fun- damentais da linguística histórica desde a própria consolidação do método histórico-comparativo no século XIX. Embora tenha perdido a primazia dentro da linguística para outros enfoques, este estudo continua a ser muito útil para conhecer a formação de uma língua, e, por conseguinte, a sua classificação quanto à origem. Para tanto, o estudo do léxico pode ser ao mesmo tempo pon- to de partida e de chegada da pesquisa. É ponto de partida porque não se estudam os metaplasmos senão nas palavras e é de chegada porque a conformação das palavras assinala a origem da língua. Como se exporá mais adiante, é comum a dúvida sobre a clas- sificação da língua inglesa quanto à sua origem, se é mesmo uma língua germânica, se pode ser considerada uma língua românica (ou, como se costuma dizer, “latina”) ou, em um meio termo, se é uma língua híbrida, que combina ambas as origens. O modo mais difundido de estudo da questão tem sido a quantificação da etimologia com base nas entradas de dicionários, o que gera diferentes cifras. A interpretação destes dados é que tem dado azo ao lugar-comum que precede a dúvida sobre a classificação do inglês: a maior parte do léxico inglês tem origem latina. Embora pareça contraditório à primeira vista, o estudo da formação do léxico das línguas românicas pode lançar luz sobre esta questão de um ponto de vista diferente. Ora, se se diz que a maior parte do léxico tem origem latina e se isto causa dúvidas em relação à classificação da língua, por que não se confrontam a formação do léxico românico e esta parcela do léxico inglês? Este artigo tem o fim de gerar um entendimento da configura- ção híbrida do léxico inglês precisamente a partir das várias camadas 2168 de palavras de origem latina de que se compõe o léxico das línguas românicas. Estas camadas são reconhecíveis justamente a partir dos metaplasmos que se observam nas palavras. Este estudo demonstra que o que se costuma julgar indiscriminadamente léxico de origem latina apresenta, na verdade, uma consistência bem mais complexa, do que se conclui que a proposição de que o inglês tem uma origem híbrida é um mito que distancia a língua e, por conseguinte, a cultura das suas raízes germânicas. O artigo está repartido em cinco seções: na introdução esta- mos apresentando-o, à qual seguem exposições sobre a formação dos léxicos latino, românico e inglês; nas considerações finais conclui-se a arguição contra o mito da origem híbrida do inglês que deriva do exposto na segunda e terceira seções e se desenvolve na quarta, e que consiste no confronto entre os fatos expostos acerca da formação do léxico latino e românico e textos publicados na Internet. 2. O léxico latino O latim é uma língua indo-europeia e, como tal, tem suas pa- lavras mais comuns compartilhadas com a maioria das línguas desta família, isto é, palavras que derivam de uma raiz proto-indo-europeia hipotética. Pode-se ilustrar isto com partes do corpo humano como o dente: lat. dens, gr. ὀδώλ1, sânscr. (dat); o joelho: lat. genu, gr. γόλπ, sânscr. j nu); o pé: lat. pes, gr. πνύο, sânscr. (pad); re- lações de parentesco como mãe: lat. mater, gr. κήηεξ, sânscr. m t ) pai: lat. pater, gr. παηήξ, pit ); irmão: lat. frater, gr. θξάηεξ “confrade”, sânscr. hr t ); elementos naturais como a luz: lat. lux, gr. ιεπθόο “ ranco”, (rócate “luzir”); a noite: lat. nox, gr. λύμ, sânscr. (nákti); o sol: lat. sol, gr. ἥιηνο, s rya); animais como o cavalo: lat. equus, gr. ἵππνο, sânscr. áśva); a ovelha: lat. ouis, gr. ὄϊο, sânscr. (ávi); o urso: lat. ursus, gr. ἄξθηνο, sânscr. kṣá); elementos vitais como a casa: lat. domus, 1 O conhecimento dos valores das letras gregas é bastante estendido entre o público deste artigo, de modo que opta por não as transliterar. 2169 gr. δόκνο, sânscr. (dáma); a lã: lat. lana, gr. ιῆλνο, sânscr. r ) o jugo: lat. iugum, gr. δπγόλ, sânscr. (yugá); adjetivos como direito: lat. dexter, gr. δεμηόο, sânscr. (dákṣi a) novo: lat. nouus, gr. λένο, sânscr. (náva); vermelho: lat. ruber, gr. ἐξπζξόο, (rudhirá); vários verbos como viver: lat. uiuo, gr. βίνο “vida”, sânscr. j vati); ver: lat. uideo, gr. εἴδω, sânscr. (vétti); sentar: lat. sedeo, gr. ἕδνκαη, sânscr. s dati); comer: lat. edo, gr. ἔδω, sânscr. (átti); beber: lat. poto, gr. πίλω, sânscr. (píbati); conhecer: lat. nosco, gr. γηγλώζθω, sânscr. j n ti) cozer: lat. coquo, gr. πέζζω, sânscr. (pácati); tecer: lat. texo, gr. ηέρλε “arte”, sânscr. tákṣati) levar: lat. fero, gr. θέξω, sânscr. (bhárati); dar: lat. do, gr. δίδωκη, sânscr. dád ti) seguir: lat. sequo, gr. ἕπνκαη, sânscr. (sácate); um pronome co- mo eu: lat. ego, gr. ἐγώ, sânscr. (ahám); um advérbio como on- tem: lat. heri, gr. ρζεο, sânscr. (hyas); uma preposição como e: lat. -que, gr. ηε, sânscr. (ca). Como argúi Devoto (1940, p. 17), dentro da família indo- europeia o latim se configura pelo seu léxico como uma língua peri- férica, juízo amparado em várias palavras cognatas com outras sâns- critas, no outro extremo do domínio indo-europeu antigo, mas sem correspondente grego, que ocupa uma posição central. Podem-se ci- tar palavras como o varão: lat. uir, sânscr. v rá); o jovem: lat. iuuenis, sânscr. (yúvan); a boca: lat. os, sânscr. s) o nariz: lat. nasus, sânscr. n s ) a língua: lat. lingua, sânscr. (ji- hv ); o traseiro: lat. clunis, sânscr. śró i); um deus: lat. deus, sânscr. (devá); um rei: lat. rex, sânscr. r j); o fogo: lat. ignis, sânscr. (agní); o dia: lat. dies, sânscr. (diná); o freixo: lat. fraxinus, sânscr. h rja “ étula”); o carvalho: lat. quercus, sânscr. parkaṭ “figueira”); o ninho: lat. nidus, sânscr. n ḍá) a roda: lat. rota, sânscr. थ rátha “carro”) o eixo: lat. axis, sânscr. ákṣa) estreito: lat. angustus, sânscr. aṃhú); devasso: lat. lasciuus, sânscr. láṣati “desejar”) temer: lat. temeo, sânscr. támas “trevas”) esquentar: lat. tepeo, sânscr. (tápati); vi- 2170 ger: lat. uegeo, sânscr. v ja “vigor”); além: lat. trans, sânscr. (tirás). Depois, abstraindo o grego e o sânscrito, descobre-se a rela- ção entre o léxico latino e o germânico, que caracteriza o latim como língua ocidental dentro da família indo-europeia (cf. id. ib.., p. 25): lat. mentum “queixo”, ingl. mouth “boca” lat. hostis “inimigo”, ingl. guest “hóspede” lat. gelu “gelo”, ingl. cold “frio” lat. faba “fava”, ingl. bean “feijão” lat. far “trigo”, ingl. barley “centeio” lat. gra- num “grão”, ingl. corn m.s.; lat. hordeum “cevada”, ingl. gorse “to- jo” lat. gallus “galo”, ingl. call “chamar” lat. haedus “ca rito”, ingl. goat “ca ra”; lat. piscis “peixe”, ingl. fish m.s.; lat. porcus “porco”, ingl. farrow “leitão” lat. arcum “arco”, ingl. arrow “flecha” lat. sordes “sujeira”, ingl. swart “preto” lat. cano “cantar”, ingl. hen “galinha” lat. capio “tomar”, ingl. have “ter”; lat. duco “puxar, con- duzir”, ingl. tow “puxar” lat. sagio “farejar”, ingl. seek “procurar” lat. seco “cortar”, ingl. saw m.s.; lat. tongeo “sa er”, ingl. think “pensar”. Enfim, como é natural, os latinos tomaram palavras dos povos com os quais interagiram, a começar pelos demais italiotas, cujas pa- lavras são reconhecíveis por metaplasmos alheios à mudança do pro- toindo-europeu para o latim, por exemplo, em bos “ oi” ou lupus “lo o”, cujas formas ancestrais, *gʷou- e w ʷo , teriam dado *uos e *luquus em latim, ou na vacilação entre sibilare com /b/ latino e si- filare com /f/ osco-umbro. Por outro lado, é sabido que estes povos chegaram à Itália por migração, o que comportou o empréstimo de palavras dos povos que já habitavam a península. Ainda seguindo Devoto (ib., p. 50-54), sobressaem-se os nomes de elementos da flo- ra e da fauna: camox “camurça”, cortex “cortiça” cupressus “cipres- te”, feles “gato”, ficus “figo”, fungus “cogumelo”, hirundo “andori- nha”, ibex “ca ra montês”, larix “lariço”, laurus “loureiro”, lilium “lírio”, papauer “dormideira”, papilio “ or oleta”, passer “pardal”, rosa “rosa”, talpa “toupeira” tam ém há referentes à sociedade, como famulus “servo”, mulier “mulher”, plebs “ple e”, urbs “cida- de”; verbos como cupio e opto “desejar”, licet “é permitido” e opor- tet “é preciso”, loquor “falar”, iuuo “ajudar”. Mas, sem sombra de dúvida foram os gregos o povo cuja lín- gua influiu mais na latina; se bem que esta influência começa bem 2171 antes de os romanos conquistarem a Grécia estrita. Já nos tempos do Reino entraram palavras gregas no latim, algumas pelas colônias da Magna Grécia, como ἔιαηνλ > oleum “azeite, óleo”, θακάξα > came- ra “a ô ada”, θέιεο > celox “navio leve”, θξαηπάιε > crapula “em- riaguez”, θπβεξλῶ > guberno “pilotar”, κῆινλ > malum “maçã”, κεραλή > machina “máquina”, ζηόκαρνο > stomachus “estômago”, e há o curioso caso de πξόζωπνλ “face, máscara”, que chega ao latim, persona, por meio do etrusco, phersu. Dos tempos da República há de se ressaltar βαιαλεῖνλ > balneum “ anho”, uploads/Geographie/ metaplasmos.pdf
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- Publié le Jui 08, 2021
- Catégorie Geography / Geogra...
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