62 R E V I S T A L A T I N O A M E R I C A N A DE PSICOPATOLOGIA F U N D A M E
62 R E V I S T A L A T I N O A M E R I C A N A DE PSICOPATOLOGIA F U N D A M E N T A L O que é phatos?* Francisco Martins Rev. Latinoam. Psicop. Fund., II, 4, 62-80 Por intermédio do estudo da etimologia do termo pathos é apresentado as transformações e sentidos que as concepções concernentes tomaram ao longo do tempo. Inicialmente é mostrado que pathos tomou o sentido principal atual de doença, mal-estar. Porém, é logo esclarecido que pathos na sua origem é prin- cipalmente disposição afetiva fundamental, conforme a leitura de Heidegger. É mostrada a importância de pensar a psicopatologia e toda ou qualquer clínica como sendo relacionada à disposição. Neste sentido, a concepção kantiana de pathos como paixão que o sujeito está assujeitado é uma das maneiras que pode tomar a disposição afetiva fundamental. Acrescenta-se que o pathos cartesiano que domina o homem moderno e o fazer clínica como sendo daquele homem que duvida e busca então a certeza diferentemente do pathos grego dominado pelo espanto e pela discursividade. Pathos é pensado como sendo algo inerente ao ser humano e por isso mesmo qualifica o estudo de tudo o que diz respeito a este termo como sendo algo próprio do humano. Palavras-chave: Psicopatologia, ontologia, etimologia, disposição * O presente texto constitui parte do primeiro capítulo do livro intitulado Psicopathologia a ser publicado proximamente; contou com a ajuda do CNPq. 63 ARTIGOS La forme la plus haute de la praxis, c’est la théorie. M. Granger Preâmbulo As concepções teóricas são fruto de um longo e tortuoso percurso na história. Elas não se fazem per se. Os conceitos, mesmo os utilizados na atualidade, quase sempre são recriações de um pensamento originário. Essa verdade nem sempre é fácil de ser mostrada, em especial quando uma concepção prevalente encobre e procura tornar sem importância outras acepções. Contudo, logo que o conceito fundamental de um determinado setor ou de uma prática é desvirtuado a ponto de se perderem noções essenciais, torna-se premente repensar a questão. No nosso caso, que somos clínicos profissionais: O que é pathos? Existem modalidades diversas de acolher um conceito que seja julgado chave em um determinado domínio. Um modo importante de fazê-lo é retomar o caminho percorrido pelas concepções e práticas em que ele é empregado, mas não de uma forma historicista que não organize e hierarquize pelo critério de importância as contribuições radicais. Existe assim, com relação ao conceito de pathos, mais que uma estrada muito freqüentada, hoje convertida em uma free way, em que a concepção normativa, canônica, encontrou suas facilidades pragmáticas. Existem estradas perdidas que levam a lugarejos e a sítios especiais que, para um bom turista ou para quem busca algo específico, serão úteis por necessidade. Elas foram transformadas, calçadas e pavimentadas e mudaram de percurso em função da própria dinâmica das transformações culturais. Algumas delas submergiram e desapareceram, 64 R E V I S T A L A T I N O A M E R I C A N A DE PSICOPATOLOGIA F U N D A M E N T A L transformando-se em veredas, ou deixando somente rastros, pistas, indícios de uma direção perdida. A metáfora das estradas corresponde bem ao conceito de pathos, não só por figurar a banalização e a utilização exclusiva de um dos sentidos do étimo, mas principalmente porque envia-nos à constatação da existência de sentidos fundamentais e essenciais naufragados no ruge-ruge dos tempos modernos. Uma retomada da questão páthica se faz premente levando-se em conta o particular avanço de concepções que, se por um lado constituem progressos verdadeiros, incorrem por outro em modalidades de pensamento que não enunciam seus pressupostos e interesses. Outrossim, e isto é mais grave, revela-se nestes projetos o desaparecimento paulatino, ou melhor, a negação e o esquecimento de toda uma série de conceitos recorrentes na clínica diária e na existência de cada um de nós, sendo por isso mesmo fundamentais. Reabertura da questão páthica Pôr em forma de questão o título deste capítulo não tem só o intuito de servir de introdução a um livro que trata deste tema ou de encontrar uma definição final tranqüilizadora que dirima o problema de vez. Colocar a questão em torno de um termo julgado essencial não tem um intuito apenas simbólico, no sentido de ser representativo. Ao contrário, visa a retomada das formas vivas e essenciais que envolvem o pathos. Implica reabrir o estudo a uma problematização que foi esquecida e empobrecida por soluções tranqüilizadoras de uma época da humanidade ávida pela posse de princípios que afastassem de vez a dúvida e o desespero. Lamentavelmente, essa avidez nem sempre foi acompanhada de um exame mais minucioso, o que provoca em alguns desespero que os afasta de maior clareza, acabando por soçobrar em concepções obscuras que simplesmente não passam por um esforço de demonstração mínima, terminando por cair em uma magia imbuída de bons propósitos, a qual faz apelo às emoções e identificações populares e desqualifica o conhecimento científico. Já outros, marcados pelo universo da dúvida, se esforçam por negar toda uma série de fenômenos, na medida em que esses não sejam passíveis de empirização. Ambos prosseguem seus caminhos respectivos, um idealista e outro cético, como se Kant não tivesse existido. Reabrir a questão consiste, portanto, em retomar caminhos diversos. Nem todos serão profícuos, mas serão necessários, tendo em vista que alguns pensam conhecer um país pelo fato de que o atravessaram por uma auto-estrada. Dizemos ciosamente que conhecemos a Europa ou a América por meio de uma viagem de férias, mas sabemos tratar-se de um eufemismo turístico. Não acreditamos realmente ao pé da letra nesta possibilidade concreta. Caso haja insistência, serão os habitantes das regiões desconsideradas que não aceitarão tal assertiva ligeira. Reabrir consiste 65 ARTIGOS em retomar e fazer reviver dimensões que ficaram ofuscadas por sofismas demasiado pungentes. Consiste em clarear o começo, não no sentido temporal, mas no da origem e fonte espiritual do nosso tema. O fundamento de um tal retorno implica o reconhecimento das origens mais caras do pensamento ocidental. Nem por isso implica a adoção pura e simples de uma grandeza espiritual admirada, que facilitaria a atribuição de uma autoridade imutável, rígida e fixadora dos destinos. Implica muito mais uma operação de restauração analítica. Restauração no sentido de restituição, cuidado e recuperação do essencial. Analítica, no sentido de descer às suas partes menores. Por isso, a operação em causa consistirá inicialmente em uma demolição, no sentido de desmonte, quebra em partes menores ou análise do que seria o pathos moderno, evidenciando- se assim as perdas e lesões presentes na modernidade. Interessam aqui os sentidos, representações e ações que por necessidade estejam articulados com as palavras. Essas são indicadores, estando imbricadas nos campos epistemológicos constituídos e suas práticas. O fim, portanto, de nosso trabalho é prático, não sendo possível, por isso mesmo, negligenciar as palavras, instrumentos poderosos na construção de todo e qualquer saber. No entanto, as palavras sofrem a deformação do tempo e são a própria expressão de um percurso que não é linear, não sendo possível uma reabertura da questão sem se passar por elas. Relembrando a metáfora da estrada, existiria um trilho principal bem demarcado e facilitador, mas que é acompanhado, bem o sabe o caboclo, de trilhas. Por isso, na vida, diz o adágio sertanejo, anda-se não só nos trilhos, mas também nas trilhas, o importante é não perder o principal na(s) travessia(s). O presente estudo não visa estudar o passado simplesmente pelo prazer de fazê- lo retornar bonito, glorioso, ou mesmo relevante. Trata-se de fazer presente aquilo que está fundamentalmente presentificado, tem suas raízes no passado e se projeta inexorável no futuro. Trata-se de delimitar o quid. Em outras palavras, aquilo que é essencial no transcorrer da história humana, no que diz respeito ao campo psicopathológico. Não se trata de fazer um exercício arqueológico. Consiste em elaborar os conceitos a fim de que eles se revelem com clareza e resplendor originário. Não se trata de fazer um retorno puro e simples ao passado, visando, por exemplo, ressuscitar Freud em um empenho restaurador. Isso seria somente idolatria e ingenuidade histórica. Trata-se de ver aquilo que tem facticidade, ou seja, que atravessa os tempos como sendo elemento essencial. Sentido principal do conceito de pathos na atualidade Nos tempos modernos, o termo pathos foi transformado em um radical que, quando presente, envia quase diretamente a uma concepção de doença na sua forma 66 R E V I S T A L A T I N O A M E R I C A N A DE PSICOPATOLOGIA F U N D A M E N T A L médica atual. Essa dimensão tornou-se praticamente o único sentido que tem sido valorizado por todos os compêndios, dicionários, mesmo livros especializados e, de uma forma larvar, induz à compreensão vulgar do homem comum de todos os dias. Este último não deixará de apontar pelas suas crenças e sofrimentos a necessidade de recuperar no saber atual um espaço em uploads/Ingenierie_Lourd/ martins-francisco-o-que-e-phatos.pdf
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- Publié le Apv 14, 2021
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