O que é o Homem? Introdução na Antropologia Filosófica Adriana Veríssimo Serrão

O que é o Homem? Introdução na Antropologia Filosófica Adriana Veríssimo Serrão1 (Universidade de Lisboa) Philosophica, 53, Lisboa, 2019, pp. 21-35. Na Primeira Introdução à Crítica da Faculdade do Juízo, Kant distingue dois diferentes modos de introduzir uma disciplina. Um, propedêutico, o mais comum, constitui um preâmbulo que apresenta os conhecimentos requeridos para o início desse estudo: aqueles elementos prévios que a preparam, que conduzem até ela; o modo propedêutico é uma introdução à disciplina. O outro, o modo enciclopédico, é já uma parte integrante da própria matéria; exige o conceito de um todo, o princípio sistemático da organização da disciplina tanto no seu conspecto geral quanto nas articulações internas: o modo enciclopédico é uma introdução na disciplina2. Os diversos esclarecimentos prévios à elucidação da Antropologia Filosófica deverão cruzar estes dois modelos de introdução, sendo que: – entre as áreas da filosofia é certamente aquela que se reveste de maior ambiguidade quanto ao objecto teórico e ao campo temático; – oscilante é o estatuto que lhe pode ser atribuído no âmbito geral das disciplinas filosóficas; – impreciso o qualificativo de “filosófica”, com o qual se procura distinguir o tipo de enfoque e evidenciar a especificidade de tratamento de entre um grande número de ciências que igualmente se debruçam sobre o largo campo da realidade humana. Ao enunciar e esclarecer 1 adrianaserrao@letras.ulisboa.pt 2 Kant, “Erste Einleitung in die Kritik der Urteilskraft”, XI, Faksimile und Transcription, Norbert Hinske, Wolfgang Müller-Lauter, Michael Theunissen (hg.), Stuttgart Bad-Cannstadt: Friedrich Fromann Verlag, 1965, pp. 242-243. 22 Adriana Veríssimo Serrão as dificuldades lexicais, temáticas, metodológicas e epistemológicas que rodeiam a antropologia filosófica está-se já a iniciar a reflexão: proceder simultaneamente a uma introdução “a” e a uma introdução “em”. 1. Como interpretar a expressão ‘antropologia filosófica’? Numa primeira aproximação cabe estabelecer algumas distinções: a. Antropologia filosófica em sentido lato: uma história das concepções do humano em leitura recapitulativa ao longo da história da filosofia. Esta recapitulação pode ser sequencial, recolhendo, no curso histórico, teses e proposições, tal como é apresentada em entradas de dicionários históricos e enciclopédias especializadas. Ou tipológica, obtida numa leitura transversal, identificando modelos que vão sendo retomados e permanecem constantes sob roupagens e linguagens epocais distintas. Aquela oferece um inventário neutral, cronológico e erudito; esta implica já uma tomada de posição que discrimina essas mesmas matrizes; implica necessariamente o ponto de vista do intérprete. Em ambos os casos o estudo histórico das concepções do humano não significa por si só que as afirmações relativas ao anthropos, homo, Mensch, homme… se destaquem com particular relevo no seio das concepções globais dos respectivos pensadores. É um facto que antes da Modernidade não encontraremos “antropologias” expressamente definidas e delimitadas enquanto tal. Neste sentido amplo, enquanto “história das concepções do humano”, trata-se mais precisamente de uma antropologia implícita, sem que lhe corresponda a explícita formulação ou preocupação teórica definida, ocupando essas concepções um plano secundário ou lateral, elaboradas que são no quadro de outras questões englobantes: do fundamento, do primeiro princípio, da totalidade, da realidade. A caracterização de “antropologia implícita” é particularmente fecunda como noção operacional nesta discriminação. Sugere-a, por exemplo, Wilhelm Dilthey, para vincar que “toda a asserção sobre o homem implica sempre uma afirmação sobre si mesmo, o que significa uma afirmação deste homem na sua situação. Toda a vida humana seria, por isso, hermenêutica em si mesma.”3 3 Wilhelm Dilthey, Gesammelte Schriften, Karlfried Gründe u. Frithjof Rodi (hg.), Stuttgart/Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, Bd. 7, 4.ª ed., 1965, p. 279. 23 O que é o Homem? Introdução na Antropologia Filosófica Também Michael Landmann a usa como princípio interpretativo dos seus documentados estudos sobre “o homem que se espelha no seu pensamento”: A visão do homem (Mensch-Anschauung) reflecte-se involuntária e voluntariamente em tudo o que pensamos, fazemos e produzimos. Todos os domínios culturais de um povo e de uma época contêm uma auto-compreensão humana não expressa e multi-fragmentada, uma “antropologia implícita”, como se poderia dizer, e têm nela um dos aspectos determinantes da sua configuração. Cada filosofia deixa-se circunscrever em uma antropologia.4 b. Antropologia como conjunto de reflexões explícitas, directamente incidentes na determinação de um objecto teórico circunscrito. Será necessário esperar pelo século XVIII para que a questão “do Homem” ganhe contornos precisos e se constitua fora do quadro metafísico ou teológico. Rousseau, no Prefácio ao Discurso sobre a desigualdade, de 1755, refere-se-lhe nestes termos: “O mais útil e o menos avançado de todos os conhecimentos humanos parece-me ser o do homem”5. Kant inicia a sua Antropologia numa abordagem pragmática, publicada em 1798, designando expressamente o cidadão do mundo como “o objecto mais importante”: Todos os progressos na cultura, mediante os quais o homem faz a sua formação escolar, têm o propósito de usar esses conhecimentos soltos [Kenntnisse] e aptidões adquiridos para o uso do mundo, mas, neste mundo, o objecto mais importante a que ele os pode aplicar é o homem, pois ele é o seu próprio fim último.6 O que estes pensadores visam é a universalidade humana, os traços distintivos do género humano, não a especificidade do homem individual ou a consciência de si do pensador solitário que se aprofunda num acto introspectivo, numa auto-inspecção tão bem assumida por Montaigne, 4 Michael Landmann, De Homine, Der Mensch im Spiegel seines Gedankens, Problemgeschichte der Wissenschaft in Dokumenten und Darstellungen, Freiburg / München: Orbis Academicus, 1962, pp. XI-XII. 5 J.J. Rousseau, Discours sur l’origine et les fondements de l’inégalité parmi les hom- mes; Œuvres Complètes, Paris: Seuil, 1971, vol. 2, p. 208. 6 Kant, Anthropologie in pragmatischer Hinsicht; Kant Werke, ed. de Wilhelm Weische- del, Darmstadt: Wissenschafliche Buchgesellschaft, vol. 10, p. 399. 24 Adriana Veríssimo Serrão quando afirma: o estudo fundamental do homem é estudar-se a si mesmo7. A autonomização do objecto antropológico, identificado com o humano real enquanto tal, torna este conhecimento prévio aos demais, conferindo-lhe uma posição não apenas central mas igualmente fundadora, convertendo-a em muitos casos numa nova filosofia primeira que se substitui à metafísica e à lógica, e na qual outras áreas, nomeadamente a filosofia do conhecimento e a filosofia moral, a problematização jurídica dos direitos humanos e a fundamentação política da democracia virão a encontrar bases para a sua legitimação. Também a pedagogia do Iluminismo se sustenta numa antropologia: é preciso conhecer a natureza humana antes de se poder formular um programa educativo. c. Numa terceira acepção, remete para uma orientação autodesignada de Philosophische Anthropologie, que se desenvolve na Alemanha nos anos 20-50 do século XX. Esta orientação, que congrega pensadores como Max Scheler, Helmuth Plessner e Arnold Gehlen pretendeu refundar toda a filosofia, partindo do entendimento renovado do ser humano a partir da sua natureza bio-física de espécie vivente. Qualquer semelhança com o projecto iluminista será errónea. Enquanto o século das Luzes e algumas correntes do século XIX depositavam no conhecimento da unidade e diversidade humana o optimismo de um saber em progressão, a Philosophische Anthropologie assenta sobre uma inquietação; parte do diagnóstico de uma realidade incerta cuja essência ou identidade não é mais evidente. É o reflexo de uma preocupação que ultrapassa os limites da teoria e tem alcance prático-existencial. Cientes de um tempo em crise, estes pensadores olham com cepticismo para a filosofia clássica, que, procurando determinar uma universalidade formal, não teria oferecido como respostas senão idealizações e abstracções. Apresentando-se como alternativa à tradição metafísica e ponto final de uma fase da História, procura aproximações com as ciências empíricas, com particular relevo para a biologia, que daria pressupostos firmes e libertos de aura especulativa. Como refere Herbert Schnädelbach, que caracteriza este fenómeno como típico do século XX, tratar-se-ia de um “casamento desigual” entre uma ‘antropologia’ já estabelecida como ciência especializada e a tradição filosófica” dominante” (“eine mésalliance der etablierten Einzelwissenschaft ‘Antropologie’ mit der Tradition der Philosophie.”). Em suma: 7 Michel de Montaigne, Essais III, 13; Œuvres Complètes, Paris: Ed. du Seuil, 1967, pp. 431-433. 25 O que é o Homem? Introdução na Antropologia Filosófica A Antropologia Filosófica pertence à história da crise em que o “colapso do idealismo” envolve a auto-interpretação tradicional do homem e ela forma, em certo sentido, o fim desta História.8 d. Na actualidade, a antropologia filosófica parece limitar-se a uma meta-ciência, que ora procura ainda uma base principial para as ciências (naturais e humanas) cada vez mais fragmentadas e micrológicas, ora absorve e recolhe selectivamente dados científicos para tentar compor a partir deles uma imagem global. Um marco relevante neste empreendimento é a enciclopédica Neue Anthropologie em sete volumes, dividida em: Biologische Anthropologie; Sozialanthropologie; Kulturalanthropologie; Psychologische Anthropologie; Philosophische Anthropologie; à filosofia são dedicados os volumes VI e VII9. Na sua Introdução na Antropologia Filosófica, Kuno Lorenz descreve com precisão o estatuto oscilante entre meta-ciência (Überwissenschaft) dependente dos avanços sempre provisórios das ciências sectoriais e o plano de universalidade visado pelo adjectivo “filosófica”. Reflectindo sobre a alternativa – universais empíricos ou essência especulativa? –, que parece insolúvel, pergunta-se sobre o que permanecerá ainda de filosófico numa amálgama de perspectivas que se reclamam do mesmo conceito: Deve tratar-se de uma visão panorâmica dessas afirmações empiricamente certificadas sobre seres humanos, tão gerais quanto possível, para os seres humanos uploads/Societe et culture/ philosophica-2019-0027-0053-0021-0035.pdf

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