Florianópolis, v. 4, n. 1, p. 5 – 22, jan/jun. 2012 HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE

Florianópolis, v. 4, n. 1, p. 5 – 22, jan/jun. 2012 HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE E HISTORIOGRAFIA1 François Dosse* Resumo O presente artigo redigido em francês foi apresentado em forma de conferência na abertura do I Seminário Internacional História do Tempo Presente, promovido pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina e ANPUH-Seção-Santa Catarina, realizado entre os dias 07 e 09 de novembro de 2011, na cidade de Florianópolis/Brasil. O autor, tendo em vista a historiografia francesa, apresenta um conjunto de reflexões que visa, por um lado, historicizar a emergência deste campo historiográfico e, por outro, inferir sobre os problemas e desafios presentes na escrita da História do Tempo Presente. Palavras-chave: História. Tempo Presente. Historiografia A noção de “história do tempo presente” remete a uma noção que é ao mesmo tempo banalizada, controversa e ainda instável. Ela implica em uma reflexão sobre o “Tempo”, que foi durante longa data o impensado da disciplina histórica, como afirmava Michel de Certeau (1987): “Sem dúvida, a objetivação do passado, há três séculos, tinha feito do tempo o impensado de uma disciplina que não cessava de utilizá-lo como um instrumento taxonômico”. Na França, a noção remete a um laboratório de pesquisa do Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS), que possui esse nome e foi criado em 1978, o Instituto de História do Tempo Presente (IHTP). Seu primeiro diretor, François Bédarida (1978), o definiu como “a nova oficina de Clio”. Sua instituição, segundo François Bédarida, estava associada a uma verdadeira mudança epistemológica marcada pela ascensão da dimensão memorial, a busca ansiosa da identidade e a crise dos paradigmas utilizados nas Ciências Sociais, bem 1 A revisão da tradução do presente artigo foi realizada pela historiadora Silvia Maria Fávero Arend, professora do Programa de Pós-Graduação em História, da Universidade do Estado de Santa Catarina. * Pesquisador associado ao Instituto de História do Tempo Presente. E-mail: francois.dosse@gmail.com Dossiê DOI: 10.5965/2175180304012012005 HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE E HISTORIOGRAFIA: François Dosse Florianópolis, v. 4, n. 1 p. 05 – 22, jan/jun. 2012 6 como uma crescente incerteza sobre o presente e o futuro. Em 1992, em um simpósio realizado em Paris, organizado pela IHTP com o tema “Escrever a história do tempo presente” (IHTP, 1993), René Rémond afirmava: “a batalha está ganha”. Mas se tratava ainda de uma afirmação de caráter performativo, pois a prática ainda permanece suspeita e ilegítima; ainda não considerada científica; confinada como um domínio separado, muito marcada por uma relação incestuosa com o jornalismo. Neste ano de 2011 realizou-se um simpósio internacional, organizado também pelo IHTP, com o tema do tempo presente e a contemporaneidade.2 A história do tempo presente está na intersecção do presente e da longa duração. Esta coloca o problema de se saber como o presente é construído no tempo. Ela se diferencia, portanto, da história imediata porque impõe um dever de mediação. Alguns historiadores, porém, preferem utilizar a noção de história imediata, como é o caso de Jean-François Soulet, que coordena a revista Cadernos de história imediata, outros preferem a noção de história do muito contemporâneo, como é o caso de Pierre Laborie. Alguns são ainda mais críticos, como é o caso de Antoine Prost para o qual a história do tempo presente não é nada mais do que a história em si, que nada a singulariza e que é, por conseguinte, um “pseudoconceito sem conteúdo verdadeiro”. Entre 1992 e 2011 foram produzidas diversas transformações significativas: por um lado, constatamos a ascensão de parte da história contemporânea e, por outro lado, verificamos o lugar crescente da memória e a sua conexão entre a noção de história do tempo presente. Esta relação, formalizada por François Hartog, na noção de regime de historicidade. Daí as perguntas sobre o presentismo e sobre o problema da não contemporaneidade do contemporâneo. Isso levanta a questão de saber se não teríamos entrado em um novo regime de historicidade caracterizada, entre outros, pelo presentismo. Enquanto em 1992 o fato que gerou polêmica foi a utilização de fontes orais, em 2011, o que está no cerne dos debates é o aumento das fontes imagéticas, dos recursos relativos a informática e a inflação arquivística que produz um excesso de documentos. Defenderei, de minha parte, a ideia de uma verdadeira singularidade da noção da história do tempo presente que reside na contemporaneidade do não contemporâneo, na espessura temporal do «espaço de experiência» e no presente do passado incorporado. Encontrei essa concepção nos estudos de Pierre Nora na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), em 1976, quando ele foi eleito para uma cátedra em “História do tempo 2 Temps présent et contemporanéité, IHTP, 24 a 26 de março de 2011. HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE E HISTORIOGRAFIA: François Dosse Florianópolis, v. 4, n. 1 p. 05 – 22, jan/jun. 2012 7 presente”. Pierre Nora referia-se a história contemporânea como “o parente pobre dos estudos históricos; tomada de inferioridade em seu próprio princípio”.3 O historiador norteava-se na revolução historiográfica em curso e inaugurada pelos Annales que colocou em questão o princípio intangível ao século XIX, de uma história como ciência do passado. Ele insistia em definir as ambições de sua disciplina sobre a noção de presente: “É lógico que a indagação do historiador expande naturalmente seu horizonte no tempo presente: um presente cuja espessura própria e a opacidade transparente apresentam ao estudo, no entanto, problemas de método singulares. Estas são as características originais desta nova consciência histórica que, por falta de meios, teríamos a intenção de esclarecer” (DOSSE, 2011). Esta orientação norteou a disciplina de história do tempo presente ministrada na EHESS e vai estar presente na elaboração dos Lugares de memória. Em seu seminário de 1978-79, Pierre Nora claramente vincula sua emergente problemática, a dos Lugares de memória, à problemática do presente. É assim que ele introduz uma inovação historiográfica que transgride a divisão tradicional entre os quatro períodos que distinguem a Antiguidade, a Idade Média, os Tempos Modernos e a Idade Contemporânea: “Apenas tudo remontando muito longe no tempo, podemos compreender que não vamos deixar o mais próximo. E que mesmo em se tratando da Idade Média, nós fazemos história contemporânea” (DOSSE, 2011). Definidos os lugares de memória como um meio-termo entre memória coletiva e História, o tempo presente corresponde a esse meio-termo também entre passado e presente ou o trabalho do passado no presente. O tempo presente não seria então um simples período adicional destacado da história contemporânea, ma uma nova concepção da operação historiográfica. I - Uma novidade? A história do tempo presente é realmente uma novidade? Se mergulharmos nos momentos de emergência da disciplina histórica, na Antiguidade, constatamos que esta abordagem já tem o peso de uma longa tradição. Assim, segundo Tucídides, que ouvia o relato das guerras do Peloponeso, não há outra história que a do tempo presente e é em seu nome e suas exigências que ele critica com veemência Heródoto, chamado de logógrafo e de mitólogo. O contrato de verdade, próprio ao discurso do historiador, pressupõe, segundo Tucídides, a testemunha ocular. O que ambicionamos restituir é, então, a historicização de uma experiência transversalizada: “O autor se pôs a trabalhar desde os primeiros sintomas da guerra”, escreveu Tucídides antes de se lançar na narrativa da guerra. Cortando assim da 3 Pierre Nora, notas preparatórias para seu curso do ano de 1978-1979, citadas em DOSSE, 2011, p. 290. HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE E HISTORIOGRAFIA: François Dosse Florianópolis, v. 4, n. 1 p. 05 – 22, jan/jun. 2012 8 História qualquer pretensão de restaurar aquilo que precede o presente, Tucídides reduz a operação historiográfica a uma restituição do único tempo presente. Por outro lado, o pensador grego na referida narrativa privilegiou a testemunha ocular e a oralidade. Quando a história se profissionalizou no século XIX com a escola metódica, os historiadores privilegiaram, ao contrário, as fontes escritas e insistiram na necessidade de uma objetivação que passou pelo estabelecimento de uma ruptura entre o passado e o presente. As fontes documentais disponíveis nos arquivos foram produzidas há mais de cinquenta anos, em função dos prazos de guarda da documentação permanente. Isso resulta em uma desqualificação da história imediata. A partir dos anos 1930, um dos aspectos inovadores da escola dos Annales, instituída por Marc Bloch e Lucien Febvre, foi o de reintroduzir a história ao presente. Podemos então ler na revista Annales artigos sobre processos vigentes naquele momento: sobre Franklin Delano Roosevelt e sua política do New Deal; sobre a coletivização de terras na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Além disso, Marc Bloch definindo a metodologia da disciplina histórica insiste sobre o vai e vem constante entre o passado e o presente: “A incompreensão do presente nasce fatalmente da ignorância do passado. Mas não é talvez coisa menos vã consumirmo-nos a compreender o passado, se nada sabemos do presente” (BLOCH, 1949, p. 47). Daí o valor heurístico que Marc Bloch atribui ao presente que, segundo ele, deve induzir o historiador a uma abordagem recorrente “às avessas”, que parta do menos desconhecido para ir ao mais opaco. O historiador utilizou-se desse processo, que o uploads/Religion/ f-dosse-historia-do-tempo-presente-e-historiografia-pdf.pdf

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  • Publié le Dec 02, 2021
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