1 A experiência patológica do tempo. Para uma fenomenologia da forma temporal.

1 A experiência patológica do tempo. Para uma fenomenologia da forma temporal. por Irene Borges-Duarte Universidade de Évora Esta comunicação nasce de uma convicção e desenvolve, ainda que embrionariamente, uma hipótese de trabalho. A convicção de que parte tem-se alicerçado no estudo quer de aspectos da fenomenologia dos afectos, quer de investigações do foro da psicanálise. É a seguinte: a repetição quotidiana dos comportamentos ritualizados, enquanto expressão da cedência humana ao mundo da vida, raramente permite encontrar experiências puras, originárias, muito embora manifeste vivencialmente aspectos de autenticidade. A hipótese de trabalho, surgida dessa convicção, sobre um fundo de ontologia hermenêutica, basicamente de raíz heideggeriana, é a seguinte: se queremos encontrar a verdade genuína, isto é, a experiência radical do que é constitutivo da compreensão humana e dos seus modos, teremos que procurar, no âmbito de exercício da vida quotidiana, aqueles casos e fenómenos em que, justamente, esses comportamentos rituais falham e se quebram, de facto, e são como tal Afalha@ percebidos numa experiência singular e profunda de sofrimento: isto é, quando a frágil linha divisória entre a normalidade e a patologia se desvanece, pelo menos parcial e temporariamente. Isto não significa medir o humano pela bitola do Aanormal@ (por deficit ou por superabundância), mas encontrar na invulgar acuidade de certos instantes vitais - de que todos podemos fazer a experiência, mas a que habitualmente não estamos abertos, ao contrário daqueles cuja fragilidade os expõe desamparada e subitamente - o cunho indelével do que poderíamos chamar Aacontecimento fundador@ ou, talvez mais brandamente, experiência inicial. O que, em seguida, procurarei transmitir é o modo como uma tal experiência do tempo pode ser - pode ter sido e voltar a ser - possível e em que situações poderia ser - ou é - recuperável. Se, por outro lado, o tempo - como dizia Heidegger, não longe de Kant - é Ao como@ (o modo de ser e de conhecer) do que é, o acesso à experiência originária do tempo determinaria, de alguma forma, a própria configuração da nossa relação à realidade. Não pretendemos, portanto, 2 tratar de expor o Aconceito@ de tempo - constructo ideativo com base nessa experiência inicial - mas tentar auscultar como chegamos, em geral, a poder ter conceito(s) do que o tempo seja. Nesse contexto, a fronteira entre o Anormal@ e o Apatológico@, no seu poder quebrar-se, poderia revelar-se, justamente, como aquilo a que vamos chamar a possível Afigura da origem@, isto é, como a configuração originária do tempo (ou do tempo originário) enquanto o Acomo@ da própria possibilidade da experiência. O nosso trajecto tem, assim, 4 momentos: primeiramente, a análise daquilo em que possa consistir a experiência do tempo, tomando como ponto de partida um caso singular e a etimologia do termo; em 21 lugar, a exploração, com essa base, da hipótese de que Ao tempo@ nasce da experiência de corte, seja como ruptura (subjectiva: corpórea ou psicológica), seja como fraccionamento (objectivo, Afísico@) e, em definitiva, como uma separação, para o que referirei certos aspectos da Psicanálise; em 31 lugar, a auscultação de como o carácter doentio de certas maneiras de viver o tempo podem revelar, enquando exibição de uma falta ou de um vazio, a sua situação de nascimento e, portanto, de possível recuperação; finalmente, numa conclusão breve e aberta, a consideração do tempo como índice da duplicidade da condição humana. 1. A vivência originária do tempo. Vou começar com uma história: um caso real, recolhido numa clínica suiça, há poucos anos. Um camponês, muito jovem e de poucas luzes, foi um dia encontrado pelos seus companheiros em estado quase catatónico, estático mas trémulo, sem fala, nem mostras de reconhecer ninguém. Assustados com comportamento tão insólito, em quem conheciam bem, os companheiros levaram-no ao hospital, onde trataram de reanimá-lo pelos procedimentos habituais, ante os sintomas de possível ataque, provavelmente epilético, ou acidente traumático de algum tipo. Quando, finalmente, houve resposta orgânica positiva e, lentamente, o rapaz recuperou consciência e fala, não recordava nada que pudesse ser causa do seu estado, excepto, segundo disse, que Asentira, repente, que o tempo tinha parado, que as árvores eram como flores de gelo, que as ondas do mar tinham cristalizado e que mesmo os relógios só continuavam a funcionar porque se lhes tinha dado corda de manhã.@1 1 Conheço o episódio clínico por narração directa de um elemento do pessoal da entidade hospitalar em questão. Reproduzo, por isso, as palavras exactas que foram registadas no seu idioma original:.ADie Bäume sind wie Eisblumen, die Wellen des Meeres sind erstarrt, und die Uhren gehen nur noch, weil sie heute morgen 3 É manifesta aqui a separação entre o conceito vulgar de tempo, registado na referência aos relógios e na alusão aos gelos, certamente invernais, e aquilo a que chamei a experiência propriamente dita do tempo. É nesta que se detém, como em reverberações de um instante, a vivência da cristalização da própria vida e da natureza, num uníssono suspenso, em que tudo se anula e em que só essa anulação - desgarradora, tremebunda - permanece. Um grito surdo e cortado ante o súbito nada. Pode ser esta a imagem inicial do tempo? Se é certo que o dar nome (às coisas, à vivência da relação humana com as coisas) é a actividade linguística mais originária, a etimologia deveria servir, pelo menos, de indício do que possa ser a experiência do tempo. Na palavra Atempo@ soa ainda límpido o latim tempus: tempo, porque momento ou período de tempo e a respectiva sucessão de momentos ou períodos. Na designação ouvimos, pois, a experiência de um todo, não tanto enquanto tal todo, mas enquanto um continuum de partes ou fracções, de diferente duração. Em tempus ouvimos, de facto, a fractura, o resultado da acção de cortar que corresponde ao seu étimo grego: τέµvω, cortar, separar, talhar, fender. Esta etimologia encontra paralelismo no alto alemão zit e no anglo-saxão tid de que derivam, respectivamente, Zeit (tempo) e tide (maré, que em alemão se diz Gezeiten), significando originariamente algo Aseparado@, Aque se separa@, Aà parte@: o resultado, portanto, da acção de Apartir@ (teilen), Arasgar@, Afender@ mas também Aceifar@, presente na raíz indo- germânica dati- ou díti-h2. A experiência primeva do tempo parece ser, portanto, a de um corte, a de uma separação ou divisão. Que se parte e separa no tempo? 2. Da vivência ao conceito: a experiência do tempo. aufgezogen worden sind.@ 2Ver DUDEN, 1963, 778 Fende-se, em primeiro lugar, a suposta continuidade originária: a da duração indefinida e 4 alheia à sua própria consciência. Vejamos: se, ocupados com algo, não atendemos ao estar ocupados, mas apenas àquilo em que nos ocupamos - por exemplo, ao pintar um quadro, simplesmente pintamos o que vemos e queremos pintar, sem que nos desfaleça a inspiração e o ímpeto; ou se, ao fazer as compras habituais de abastecimento doméstico, atendemos àquilo que sabemos que temos que comprar - não nos apercebemos do tempo, que, contudo, decorre e terminará por aparecer quando o cansaço vença o pintor e o faça olhar o pintado, agora, como Aaquilo que está pintado@, isto, parado e fixo no espaço-tempo da imagem produzida; ou quando a lenta fila da caixa do supermercado obrigue a dona (ou o dono) de casa impaciente a olhar o relógio e a desesperar-se, por pensar que se atrasa. Imersos na acção de pintar ou de fazer compras, o pintor e a dona de casa não sentem o tempo, que contudo passa, indiferente e amorfo. A ocupação criativa do primeiro e a performance rotineira da segunda duram sem consciência de duração, até que a continuidade da acção se rompa: o quadro, no seu estado actual, recorda a acção que se deteve, por cansaço, talvez, e sugere, talvez, o recomeço, logo ou amanhã, da tarefa projectada de o terminar; a arrecadação ordenada das compras recorda, talvez, o esforço feito e transforma-se em alívio, assegurando a programação do decurso da semana. É o corte na continuidade da acção que torna presente o transcurso do tempo e os seus diferentes momentos: o agora, o antes e o depois; o tempo do pintar e o tempo do cansaço; o tempo do procurar e o tempo da fila de espera; o tempo de projectar e o tempo de aguardar. Este Acorte@ deve, pois, entender-se no sentido de uma cisão ou fenda que, introduzida pelo olhar, destaca como linha divisória o agora do que Aestava a ser@ e Ajá não@ é, convertendo-se em esboço prístino do tempo, isto é, da diferenciação de momentos. Mas o inexorável trânsito do Aagora@ a Ajá não@ - ou seja, o fluxo do tempo assim surgido - indica claramente um sentido ou direcção projectiva, correspondente ao Aainda não@. O Ajá não@ e o Aainda não@ podem ser, de forma derivada, cortados em multíplices Aantes@ e Adepois@, estilhaços de tempo, susceptíveis de ser medidos e ordenados, segundo o ritmo pautado já não pelo instante inicial da fractura, mas pela pura lógica do cálculo, que acaba de Atalhar@ o conceito de tempo. É o relógio que mede todos estes estilhaços com a rotunda eficácia de uploads/Ingenierie_Lourd/ a-experiencia-patologica-do-tempo-para-uma-fenomenologia-da-forma-temporal.pdf

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