Acta Palaeohispanica X Palaeohispanica 9 (2009), pp. 247-270 I.S.S.N.: 1578-538

Acta Palaeohispanica X Palaeohispanica 9 (2009), pp. 247-270 I.S.S.N.: 1578-5386. ActPal X = PalHisp 9 247 ¿TERÃO CERTOS TEÓNIMOS PALEOHISPÂNICOS SIDO ALVO DE INTERPRETAÇÕES (PSEUDO-)ETIMOLÓGICAS DURANTE A ROMANIDADE PASSÍVEIS DE SE REFLECTIREM NOS RESPECTIVOS CULTOS? José Cardim Ribeiro AQUELE QUE CONHECE OS NOMES... “Il faut partir du Cratyle.” Belayche 2005, 17. “Aquele que conhece os nomes, conhece também as coisas” (Plat. Crat., 435d). Assim resume Crátilo o seu pensamento, segundo o diálogo platónico epónimo.1 A ancestral crença de que os nomes se confundem com a própria essência dos seres, que os nomes possuem afinal, eles mesmos, uma di- mensão ontológica necessariamente inerente àquilo que nomeiam (cf. v.g. Cassirer 1973, 10), surge desde logo amplamente documentada nos poemas homéricos (cf. v.g. Pfeiffer 1981, 27-28) e, fixando-se nos deuses — que mais do que tudo no mundo importa melhor conhecer, ou tentar conhecer, para com- preender em profundidade a natureza e o carácter de cada um deles e, assim, poder invocá-los com maior eficácia, ansiando alcançar com pleno êxito a sua desejada intervenção —,2 essa arreigada convicção perpassa já ao longo de toda a Teogonia de Hesíodo (cf. v.g. Fresina 1991, 47 ss. e Bernabé 1992, 32-37). Este pressuposto ‘cratilista’ está largamente subjacente ao pensamento órfico (cf. v.g. ainda Bernabé 1992; além de id. 1999 e Casadesús 2000) e, mais tarde, embora com alguma importante transformação, afecta igualmente a filosofia estóica. A diferença fundamental reside no facto do Pórtico recusar confundir ontologicamente o ser do nome com o ser da coisa nomeada, postulando antes que o nome se restringe a espelhar, a reflectir, a essência daquilo que designa, não partilhando ele próprio dessa mesma essência (cf. v.g. Fresina 1991, 111 ss.). O nome é aqui entendido como sinal providen- cial conducente à verdade das coisas, verdade que, se não é atingida nem compreendida, não o é por defeito ou erro do nome em si mesmo, mas sim ———— 1 Sobre este estimulante quão controverso texto vid. Barney 2001 e Sedley 2003. 2 Cf. para uma abordagem geral deste tema, a clássica obra de Decharme 1904, 291-303. José Cardim Ribeiro 248 ActPal X = PalHisp 9 por ignorância ou inabilidade de quem erradamente o interpreta; tal como os sinais divinatórios, cuja intrínseca exactidão nos é garantida por Cícero, contrastando-a com a possível incompetência dos homens quanto à sua leitura: “Os estóicos não são da opinião que a divindade intervenha em cada interstício do fígado ou em cada canto de ave (...); mas consideram que o mundo foi desde início constituído de tal modo que alguns acontecimentos sejam precedidos de certos sinais, uns surgindo nas vísceras, outros nas aves, outros ainda nos raios, nos prodígios, nos astros, nas visões do sonho ou nas palavras dos ins- pirados. Aqueles que compreendem bem esses sinais, não se enganam muitas vezes. É quando as conjecturas e as interpretações são más que surge o erro, não por defeito [dos sinais] mas por ignorância dos intérpretes” (Cic. De Div. I, LII.118; cf. ainda Fresina 1991, 120). Mutatis mutandis poderíamos aplicar este texto ciceroniano à teoria estóica dos nomes como veículos con- ducentes à exacta percepção da especificidade ontológica das coisas nomeadas. Tal postura levou ao “fundamento racional da confiança na etimologia e, consequentemente, do poder cognitivo dos nomes” (Fresina 1991, 123). E a procura de evitar os erros, entre os discípulos do Pórtico, implicou assim uma incessante pesquisa etimológica visando aperfeiçoar os métodos, as apro- ximações fónicas e linguísticas, a vera decifração do significado dos nomes — para atingir, por fim, o real significado das coisas. E, entre todas essas coisas, sempre primaram os deuses — preocupação, aliás, não exclusiva dos estóicos, antes comum, para além da diferença e matizes dos pressupostos teóricos e das respectivas argumentações filosóficas, a várias outras Escolas, designadamente à Órfica e, mais tarde, também à Neoplatónica.3 Voltando ao Pórtico, e concretamente em época romana, não poderemos de imediato deixar de recordar os célebres parágrafos de Varrão sobre o significado linguístico dos nomes dos deuses (Varr. De Ling. Lat. V 57-74; cf. ainda Boyancé 1975), ou a posição etimologista do estóico Balbo no po- lémico diálogo ciceroniano acerca da natureza dos deuses (Cic. De Nat. Deor. II 64-69) — posição com a qual acaba sensivelmente por concordar o arpinate: “a mim [pareceu-me] que as [palavras] de Balbo estavam mais perto de uma certa semelhança com a verdade” (id., ib. III 95). * “A mitologia, no sentido mais puro da palavra, é o poder que a linguagem exerce sobre o pensamento, em todas as esferas possíveis da actividade espiritual.” M. Müller, Über die Philosophie der Mythologie, 1874. Quer o Orfismo quer, principalmente, o Estoicismo desempenham um papel primordial na formação e no pensamento das elites culturais romanas, preponderando nos dois primeiros séculos do Império e continuando depois bem vivos e actuantes, apesar de terem agora de partilhar o espaço filosófico ———— 3 Quanto, v.g., à posição de Proclus sobre este tema, cf. Criscuolo 2005. ¿Terão certos teónimos paleohispânicos sido alvo de interpretações (pseudo-)etimológicas... ActPal X = PalHisp 9 249 com o emergente Neoplatonismo de filiação plotiniana. Do escravo ao impe- rador — de Epicteto a Marco Aurélio —, do filósofo ao cidadão comum, as concepções do Pórtico influem transversalmente em todas as classes do mundo romano, reunindo numa mesma elite, ou família cultural, indivíduos sepa- rados no quotidiano por força das diferenças dos seus respectivos estatutos sociais, políticos e jurídicos (cf. v.g., sinteticamente, Verbeke 1974; Grimal 1989; Hershbell 1989; Asmis 1989). Quanto ao Orfismo em Roma, encon- tramo-lo largamente documentado sobretudo desde os primórdios do Império — ao longo do qual, aliás, foram redigidas a segunda e a terceira versões da teogonia órfica, o que por si só demonstra a inquestionável vitalidade da presente Escola durante este período (cf. v.g., sinteticamente, Brisson 1990) —, vindo na prática a estreitar laços com os mistérios dionisíacos e, mesmo, a interpenetrar-se a dada altura com certas concepções e símbolos mitraicos (cf., v.g., Jeanmaire 1991, 390-416; Ulansey 1991, 120-121); aliás, também o próprio estoicismo parece ter, afinal, influenciado alguns aspectos do pensa- mento téo-cosmológico dos seguidores de Mithras — ou ambos se influencia- ram mutuamente (cf. v.g. Turcan 2000, 99-100 e 111-112). No âmbito deste ‘caldo’ filosófico e conceptual supomos pois pertinente questionarmo-nos acerca da possível existência de uma vertente ‘cratilista’ nos processos de interpretatio praticados pelos indivíduos de cultura romana quanto aos deuses e deusas indígenas cultuados designadamente nas provín- cias ocidentais, ora integrados no extenso e aberto panteão da Romanidade. O próprio Varrão dá-nos a pista quando afirma que nem todas as divindades consagradas em Roma podem ser explicadas exclusivamente pelo latim, pois os seus nomes apresentariam raízes etimológicas comuns a outras línguas itálicas — tal “como as árvores que, nascidas junto à estrema, se espraiam pelos dois campos vizinhos” (Varr. De Ling. Lat. V 74). O problema decerto não se colocaria por simples questões teóricas, ou — como hoje diríamos — de mera investigação antropológica, mas sim por razões eminentemente práticas, ou seja, por causa da desejada eficácia e correcção das práticas religiosas ora realizadas por romanos — e incluímos aqui, sob esta genérica designação, todos quantos culturalmente assim se poderão com legitimidade qualificar e se reconheciam como tal — quanto a divindades de origem e significado desconhecidos, por eles recentemente adoptadas em função das novas conjunturas históricas, políticas e sociais proporcionadas pelo Império e pela sua abrangente Romanidade. Quando se vai viver para uma dada região, e principalmente quando nela já se nasceu e cresceu, todos os deuses e deusas aí cultuados passam a ser, por natureza própria das coisas, os nossos deuses — independentemente da possível di- versidade no que concerne à origem histórica e cultural de cada uma dessas deidades, aspecto que com evidência nos preocupa muito mais a nós, académi- cos, do que aos seus pretéritos e actuantes devotos. Para esses, o que importava acima de tudo era assegurar a protecção de todos esses deuses e deusas, nas suas diferentes funções e nos seus diversos loca sacra, cumprindo-se a pietas e o ritus com todo o rigor exigido pela tradição e especificidade de José Cardim Ribeiro 250 ActPal X = PalHisp 9 cada culto, de cada divindade e de cada santuário, bem como das peculiares características de cada voto. E, neste sentido, seria sem dúvida vital pronunciar o nome do deus com exactidão; e também, através da sua correcta compreen- são, alcançar a personalidade intrínseca e verdadeira do próprio nume, entrevê-la face a face no reflexo não enganador do seu teónimo. Em meio indígena, onde as línguas e dialectos autóctones decerto se perpetuariam, em maior ou menor grau conforme as épocas e as realidades histórico-sociais, embora quase sempre restritos à oralidade, os devotos saberiam bem — ou julgariam saber —, no âmbito de uma vulgar e contínua transmissão geracional, o significado do nome dos seus deuses. Tal como em Roma, acertando ou não as etimologias à luz dos nossos actuais conhecimen- tos filológicos, os romanos — ou pelo menos alguns romanos — supunham conhecer o sentido dos teónimos que invocavam desde tempos imemoriais. uploads/Litterature/ terao-certos-teonimos-paleohispanicos-s.pdf

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