293 Apostilas epigráficas – 3 1 In memoriam do Professor Justino Mendes de Alme

293 Apostilas epigráficas – 3 1 In memoriam do Professor Justino Mendes de Almeida Traçam-se breves observações acerca de epígrafes da Hispânia romana, em complemento ao que sobre elas já foi publicado, sugerindo-se novas leituras e interpretações. Assim, sobre CIL II 5354, discute-se o significado do acto benemerente; detemo-nos no significado do vocábulo ocellum, gravado como grafito num pequeno pote cerâmico; mostra-se como se adaptou a um texto religioso uma frase de propaganda política eleitoral; reflecte-se de novo sobre a etimologia da palavra eburum, relacionada com o teixo; dá-se nova leitura de CIL II 278; identifica-se CIL II 400; e corrige-se um lapso de interpretação de IRCP 578. On essaie d’apporter de nouvelles suggestions de lecture et d’interprétation de textes épigraphiques romains d’Hispania déjà publiés. On discute, par exemple, la signification politique présente en CIL II 5354 ; on explicite la signification du mot ocellum et l’étymologie d’eburum; une nouvelle de CIL II 278 est présentée; CIL II 400 vient d’être identifiée; on corrige une interprétation erronée de IRCP 578. Resumo José d’Encarnação* *CEAUCP – Coimbra 1 Vêm estas notas na sequência de Encar- nação, 1994 e 1995. Résumé O objectivo destas notas, como a própria palavra ‘apostila’ indica, é o de se procurar acrescentar algo ao que já foi escrito sobre as epígrafes em causa. Não se segue nenhuma ordem, nem geográfica nem cronológica (de anterior publicação). 1. CIL II 5354 É bem conhecida e tem sido amiúde citada a inscrição procedente de Burguillos, de que Fabre & alii (1982, p. 229) informam: “Actualmente se conserva en una finca de San R e v i s t a Po r t u g u e s a d e A r q u e o l o g i a - v o l u m e 1 6 | 2 0 1 3 | p p. 2 9 3 – 3 0 2 294 Caetano (2010, p. 320), aduzindo-a para provar que nem sempre o evergetismo subjacente à realização do espectáculo tinha como objectivo angariar apoio, como se deduz de uma inscrição de G. Auf(ustius) Avitus que celebrou a sua eleição como duúnviro, promovendo a realização de ludi circenses. Creio que, neste caso, a explicação poderá ser muito mais simples, atendendo a todos os dados aí fornecidos: o mais normal, em meu entender, é considerar que o pai morreu (ou ia acabar o mandato) antes de ver completada a obra, e foi o filho que, naturalmente, lhe deu conclusão. É também para ele um acto de benemerência, claro; contudo, trata-se, sem dúvida, de uma circunstância particular, que não pode aduzir- se como exemplar. 2. Ocellum4 Estudei, com a Dra. Clara Portas, um sugestivo grafito achado em Mangualde, na chamada “Citânia da Raposeira” (1993). Fora gravado após a cozedura, em gesto corrido, no bojo de uma pequena tigela de terra sigillata, cor alaranjada, com 140 mm de diâmetro. Peça graciosa, portanto, e de uso doméstico. Pareceu-nos que se poderia ler OCELLI, ainda que do C apenas restasse a terminação superior, uma vez que dois dos três fragmentos da tigela colavam precisamente aí (Fig. 1). Tendo em conta o que sabemos acerca do modo como se identificavam os lotes de cerâmica (e os respectivos proprietários) no momento em que se colocavam no forno, o mais normal seria interpretar a palavra como o genitivo de um antropónimo e traduzir ‘de Océlio’, uma vez que se regista, de facto, esse nome, embora muito raro.5 Contudo, aqui o grafito foi feito após a cozedura! Tinha, por conseguinte, uma intenção bem diferente, sobretudo se pensarmos que estamos perante… uma tigelinha, mesmo a jeito de ser usada como presente!... Assim o interpretámos, pois. Em latim, a 2 Prefiro Aufidius a Aufustius — apesar de haver alguns (poucos) testemunhos deste nomen nessa área da Península Ibérica — pela simples razão de se me afigurar que nome pouco frequente seria menos passível de abreviar que outro já mais conhecido. E basta ver o rol de Aufidii de CIL II (p. 1056) para disso nos apercebermos. É contra esta opinião Alicia Canto (ERBC 58 = HEp 7 1997 52). Jorge Alarcão (1993) também já teve oportunidade de referir-se à importância dos Aufidii na epigrafia peninsular. 3 Palavra de raiz grega que se instalou nos livros de Epigrafia e que eu proponho seja substituída por outra muito mais consentânea com a nossa mentalidade europeia, mormente meridional: benemerência — o que, aliás, se coaduna perfeitamente com o teor das epígrafes, onde a palavra benemerens é a usada. 4 Reproduzo reflexões feitas em 2011a, porque, a meu ver, completam o que se escreveu em 1993. E também porque se usara lá a expressão «torrãozinho de açúcar», totalmente anacrónica em tempos romanos… 5 Kajanto (1965, p. 239) cita o cognomen Ocelllio, como nome de escravo. Atribui-lhe o significado de portador de “small eyes”. 6 Na comunicação “Testemunhos de Reue no Ocidente brácaro”, apresentada ao XI Coloquio Internacional de Lenguas y Culturas Prerromanas de la Península Ibérica (Valência, 24–27.10.2012). Feliu de Codines”. Reza o texto que, in honorem Domus Divinae, Gaius Aufidius Vegetus2, cidadão inscrito na tribo Galéria, duas vezes duúnviro, tratou de mandar fazer umas termas: curator balineum aedificavit; contudo, diz mais a epígrafe: é que foi o filho, duúnviro designado, que pagou a despesa e celebrou a inauguração do balneário com a realização de um espectáculo circense: Gaius Aufidius […] Avitus filius […] IIvir · designatus de sua pecunia [dedit] et · editis · circiensibus · [dedicavit?]. Comentam Fabre & alii (1982, p. 232): “Podemos ver como un duouir iterum asocia a su hijo, y casi su sucesor, como duovuir designatus en una obra pública y en la popularidad de unos juegos”. Pondo em confronto os mecanismos gerados na sociedade pelo chamado “evergetismo”3, nomeadamente no que à organização de espectáculos diz respeito, Enrique Melchor Gil e Juan Francisco Rodríguez Neila (2002) afirmam: […] Debemos señalar que, en la totalidad de los casos hispanos atestiguados por la epigrafía, los magistrados que financiaron ludi libres no fueron los que comenzaban su carrera y necesitaban aumentar su popularitas (ediles), sino los que ya habían accedido a las mas altas magistraturas de las colonias y municipios (duunviros o quattuorviros iure dicundo); por tanto sus donaciones no se realizaron para obtener una promoción política mas o menos inmediata, sino para agradecer a sus comunidades el haberles permitido culminar sus carreras en la administración local. Un ejemplo muy significativo lo encontramos en la inscripción CIL II, 5354, donde aparece organizando ludi circenses G. Auf(ustius) Avitus, pues cuando el decidió celebrar estos espectáculos, ya había sido elegido para desempeñar el duunvirato y estaba a la espera de tomar posesión del cargo» (p. 141). Ter-me-ia passado inteiramente despercebida esta inscrição, a questão que ela levanta e a explicação dada por Melchor Gil e Rodríguez Neila, se a não tivesse visto referida por Teresa R e v i s t a Po r t u g u e s a d e A r q u e o l o g i a - v o l u m e 1 6 | 2 0 1 3 | p p. 2 9 3 – 3 0 2 J o s é d ’ E n c a r n a ç ã o 295 palavra ocellus é o diminutivo de oculus ‘olho’; e nas vezes em que o seu uso está documentado envolve-o uma atmosfera de ternura: o Oxford Latin Dictionary aponta-o ‘in tender or emotional language’, ‘darling’, ‘pupila dos meus olhos’, aplicado ‘to things that are particularly precious or beautiful’. E uma das passagens de Plauto mais citadas neste contexto é: Sine tuos ocellos deosculer, voluptas mea, “Deixa-me beijar ternamente os teus olhinhos, volúpia minha!”… Daí até à nossa imaginação de um gesto foi pequeno o passo: o amante pegara na taça, nela gravara a palavra e à amada a entregara: “É tua, pupila dos meus olhos!”. 3. Bormanicus e a propaganda eleitoral Provou eficazmente Armando Redentor6 que a palavra REO presente na inscrição dedicada à divindade indígena Bormanicus (Encarnação, 1975, pp. 143–148) se deve ler mesmo assim e não, como já Leite de Vasconcelos preconizara e eu aceitara, na condição de má grafia da palavra DEO. Sendo assim, para utilizarmos uma linguagem que ainda é a nossa, Bormanicus deixaria de ter carácter substantivo e passaria a ser mero adjectivo circunstancial — adaptado ao lugar, as termas — de uma divindade Reva, cujas características “aquáticas” não têm sido postas em causa (cf. Villar, 1995). Não ouso discutir essa opinião e aguardo que novos testemunhos venham contribuir para esclarecer a questão, ainda que — de uma forma ou doutra — o importante se mantém: estamos perante a manifestação do culto à divindade que os Antigos supunham presidir ao carácter curativo das termas de Vizela, onde as epígrafes a esta divindade se encontraram. Por outro lado, como outras vezes já salientei, tal não constitui impedimento para que, noutra epígrafe (CIL II 2402), a divindade seja mencionada apenas pelo seu epíteto: Bormanicus. O que me leva a incluir o tema nestas reflexões uploads/Litterature/ apostilas-epigraficas-3.pdf

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