370 Revista Porto das Letras, Vol. 06, Nº 5. 2020 História das Ideias Linguísti
370 Revista Porto das Letras, Vol. 06, Nº 5. 2020 História das Ideias Linguísticas A HISTÓRIA DA LINGUÍSTICA1 L'HISTOIRE DE LA LINGUISTIQUE Sylvain Auroux Laboratoire d'Histoire des Théories Linguistiques 1.1. A história da história da linguística revela uma preocupação relativamente antiga e, de um ponto de vista quantitativo (itens bibliográficos), absolutamente rica. Para o domínio francês, costuma-se comumente remontá-la ao século XVIII (como é o caso da história de quase todas as ciências): D. Thiébault (1773, Lettre à Monsieur Pinglin sur l’Histoire de la Science grammaticale, reeditado na Grammaire philosophique, Stuttgart – Bad Cannstatt, pp. 161-189, introdução de D. Droixhe) e F. Thurot (1776, Tableau des Progrès de la Science grammaticale : Discours Préliminaire à Hermès, reeditado por A. Joly, Bordeaux, 1970). Trata-se de estudos cujo objetivo é iluminar o estado contemporâneo da disciplina. O século XIX conhecerá igualmente trabalhos retrospectivos orientados pela gramática comparada (ver, por exemplo, a Lição de Bréal no Collège de France em 1868 sobre ―O progresso da Gramática Comparada‖), menos numerosos contudo que na Alemanha (cf. Korner, 1978b), embora o positivismo tenha atribuído um lugar importante à história das ciências (―não conhecemos completamente uma ciência se não conhecemos sua história‖, A. Comte, 1830, Cours de Philosophie positive, 2ª Lição). Encontramos no século XIX estudos cujo objeto é mais distante do trabalho contemporâneo (1854, E. Egger, Apollonius Dyscole, Essai sur les Théories grammaticales dans l’Antiquité; 1868, Ch. Thurot, Notices et Extraits de Divers Manuscrits latins pour servir à l’Histoire des Doctrines grammaticales du Moyen Age), e uma bibliografia global sobre a história das ciências da linguagem até a época moderna comporta um grande número de títulos (cf. Koerner, 1978b; Porset 1977a). Contudo, nada é comparável ao interesse que se desenha por volta dos anos 60 (ver Elementos bibliográficos e informativos) e corresponde, na França, grosso 1 Este artigo foi originalmente publicado em francês, sob o título ―L'histoire de la Linguistique‖, na revista Langue française (1980, n. 48, pp. 7-15). Foi traduzido pelo Prof. Dr. José Edicarlos de Aquino (UFT). Assinalam-se aqui os mais cândidos agradecimentos a Patrice Lénard, Thaís de Araujo da Costa e Phelippe Marcel da Silva Esteves pela generosidade na leitura e revisão da presente tradução. 371 Revista Porto das Letras, Vol. 06, Nº 5. 2020 História das Ideias Linguísticas modo, aos trabalhos de Stefanini (1962) e Chevalier (1968). O movimento é internacional (em 1964 e 1968 acontecem as duas primeiras conferências sobre o tema, que fornecerão a matéria de Hymes 1974 b) e parece coincidir com uma renovação da história das ciências em geral (cf. Greene, 1974). Submetido em 30 de julho de 2020. Aprovado em 18 de novembro de 2020. 1.2. A história das ciências jamais foi e não é ainda verdadeiramente uma disciplina acadêmica; os historiadores são frequentemente praticantes e autodidatas, e o pessoal que trabalha nos institutos de história das ciências possui uma formação heterogênea. O peso das tradições e das instituições é essencial; razões conjunturais fazem com que, de um lado, a história das ciências seja ligada a essa disciplina bastante frouxa e compósita que Lovejoy popularizou sob o nome de History of ideas, e que, de outro lado, ela seja ligada sob a dependência pura e simples da filosofia. Na tradição de Bachelard e Koyré, a história das ciências possui com a epistemologia (teoria da ciência) laços obrigatórios (cf. Canguilhem, 1970). Na verdade, podemos distinguir três elementos na epistemologia: a epistemologia normativa (a metodologia tradicional que define a priori a correção dos raciocínios, dos protocolos experimentais etc.), a epistemologia avaliativa e a epistemologia descritiva. O trabalho de avaliação das teorias é uma necessidade interna de uma disciplina, necessidade que faz parte das discussões obrigatórias que permitem pô-las em prática. Ele pode ser mais ou menos próximo do conhecimento dos fenômenos (por exemplo, a discussão sobre a necessidade de abandonar a oposição vozeado/desvozeado e de utilizar a oposição tenso/relaxado), e até mesmo relativamente geral (por exemplo, a discussão do estatuto dos dados). O essencial é notar a existência dos procedimentos de regulação que tratam as teorias como objetos, mesmo que somente para compará-las. A epistemologia descritiva toma as ciências como fatos e se esforça em construir uma reflexão coerente sobre seus diferentes aspectos (teóricos, sociológicos e práticos). A história das ciências pode ser considerada como uma parte das epistemologia descritiva, caracterizada por uma dimensão temporal. É preciso contudo distinguir entre a pura descrição de uma teoria passada (temporalidade externa) e a tentativa de construir modelos de evolução, e até mesmo de explicações de mudança (temporalidade interna). A história necessita, além disso, de um forte trabalho documental que faça referência ao estudo de fatos de um 372 Revista Porto das Letras, Vol. 06, Nº 5. 2020 História das Ideias Linguísticas certo tipo (publicações, bibliografias, etc.), em geral acontecimentos, ainda que se possa colocar as teorias e as ciências sob essa categoria (se o aparecimento de uma teoria é um acontecimento, a teoria não o é). Contesta-se pouco a necessidade de regular o trabalho científico (isto é, o recurso à epistemologia avaliativa, mais ou menos interiorizada); o papel da história parece mais ambíguo. Nós vivemos bem frequentemente com a ideia de que uma ―ciência destrói seu passado‖ (Kuhn) e, finamente, a tarefa do historiador das ciências parece se ligar mais à história geral que às próprias ciências. Em certa medida, podemos desenvolver, expor ou ensinar conhecimentos sem recorrer a sua história. A história das ciências e as ciências não trabalham sobre os mesmos dados, elas não têm nem as mesmas motivações práticas nem os mesmos resultados. Não é, no entanto, absurdo perguntar se as pesquisas das primeiras têm algum interesse para as segundas (cf. Synge, 1958). No que se segue, eu não pude tomar todos os meus exemplos da linguística francesa, pois eu nem sempre os conhecia. 2.1. A tese de Kuhn, supra citada, é completamente errônea (cf. Popper, 1975, p. 83). Para toda disciplina, existe uma história sancionada e uma outra esquecida. No limite, uma disciplina não destrói seu passado, ela o integra e o julga, o rescreve. As modalidades dessa reinscrição (cf. Raymond, 1975) fazem parte das características essenciais da descrição em questão. Há disciplinas com forte taxa de reinscrição (por exemplo, as matemáticas), outras com com taxa muito fraca, como a linguística e a maior parte das ciências humanas. O papel de uma ruptura teórica na história de uma ciência deve ser ligado a sua taxa de reinscrição. Quando a multiplicidade das rupturas é acompanhada de uma taxa muito fraca, todas as condições são reunidas para que os estados anteriores da disciplina conservem um interesse teórico direto, e, principalmente, sejam mais potentes na explicação de certos tipos de fenômenos. Em 1956, Bochenski não hesitava em escrever que a teoria medieval das pressuposições era mais rica em regras e em pontos de vista do que toda a semiologia moderna. Com um estruturalismo do tipo saussuriano, não se vê bem como tratar de questões como a sinonímia ou a figuração. Até que tenha havido interesse pela enunciação, as teorias de Port-Royal eram mais poderosas do que aquelas disponíveis. Podemos encontrar numerosos exemplos dessa espécie. Eles estão ligados ao estado teórico das disciplinas linguísticas. A maturação e o aparecimento dos diferentes procedimentos constitutivos dessas disciplinas (gramática, retórica, linguística histórica) obedecem a temporalidades distintas (cf. Bugarski, 1976). Como não se fala de ―invenção‖ senão sobre a base de 373 Revista Porto das Letras, Vol. 06, Nº 5. 2020 História das Ideias Linguísticas um sistema suficientemente estável, geral e aceito (por exemplo, durante todo o século XIX, a gramática histórica possuía tal sistema, o que permitia inventariar as ―invenções‖, isto é, as ―leis fonéticas‖), quase não temos até aqui ideias muito claras sobre a evolução progressiva dessas disciplinas. A história das ciências da linguagem tem um papel essencial a desempenhar na maturação das teorias modernas, maturação que deve ser favorecida por uma clara reconstrução das teorias passadas. 2.2. O papel de uma história em uma disciplina depende largamente da natureza de seu objeto, isto é, de sua relação com o tempo. Ele é, sem dúvida, difuso nas ciências naturais (embora não seja negligenciável). Ele é essencial para as ciências humanas porque seu objeto é de natureza histórica. Os trabalhos linguísticos passados são indispensáveis à linguística histórica. Eles são uma contribuição fundamental (embora não seja a única) a todas as tentativas de reconstrução dos estados da língua (ver, por exemplo, A. Martinet: Notes sur la phonologie du Français vers 1700 BSL, t. XLIII, 1946, pp. 13-23). A utilização correta dos dados contidos nos trabalhos passados supõe evidentemente um bom conhecimento do seu arranjo teórico (ver, por exemplo, a primeira parte de J. Stefanini, 1962). O francês não está no mesmo caso do Natick (a única fonte de informação é a gramática de J. Eliot, 1666), mas a dialetologia histórica quase não tem outras fontes além das pesquisas passadas (ver Pop, 1959). Nas ciências humanas, a pesquisa histórica deve encobrir uma experimentação frequentemente impossível. Aqui ainda não é preciso esperar da história da linguística francesa os mesmos dados que poderá produzir a história da linguística uploads/Litterature/ auroux-a-historia-da-linguistica.pdf
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- Publié le Nov 09, 2022
- Catégorie Literature / Litté...
- Langue French
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