225 ALEA VOLUME 5 NÚMERO 2 JULHO – DEZEMBRO 2003 p. 225-235 O Giacometti de Gen

225 ALEA VOLUME 5 NÚMERO 2 JULHO – DEZEMBRO 2003 p. 225-235 O Giacometti de Genet Paula Glenadel Tratarei, neste texto, não exatamente da obra de Giacometti, mas da leitura que dela faz Jean Genet (em O ateliê de Gia- cometti), escritor com cuja obra venho convivendo há algum tempo, sempre intrigada com o seu enorme potencial de esteti- zação de algo que o termo miséria poderia abranger. Discutirei, portanto, nesse agenciamento Genet-Giacometti, alguns valo- res que tal estetização pode assumir, trazendo para minha lei- tura trechos de Diário de um ladrão em que a exploração do submundo dos ladrões, mendigos, homossexuais, prostitutos e presidiários se faz mais presente. Caberia indagar-se em quais sentidos do termo “exploração” é possível pensar aqui, pois há sempre o risco de que a aventura no território do outro abra lugar à apropriação devoradora da miséria alheia, e até mesmo da própria. Estetizar Parto de um comentário de Genet sobre Giacometti: A beleza tem apenas uma origem: a ferida, singular, diferente para cada um, oculta ou visível, que o indivíduo preserva e para onde se retira quando quer deixar o mundo para uma solidão temporária, porém profunda. Há, portanto, uma diferença imensa entre essa arte e o que chamamos o miserabilismo. A arte de Giacometti parece querer descobrir essa ferida secreta de todo ser e mesmo de todas as coisas, para que ela os ilumine.* Moduladas diferentemente, adotando acentos específicos aqui e ali, essas palavras de Genet resumem o sentido de sua crítica sobre Giacometti. Para se atingir esse lugar da solidão absoluta e mais íntima de cada ser – e cada coisa – o trabalho da arte, a estetização que ela praticará em relação ao objeto que tomar por modelo, motivo ou pretexto, deve ser o de um desnu- damento. O texto de Genet sobre Giacometti abunda em ex- pressões próximas desse desnudamento: “desnudando-se o bas- tante para descobrir esse lugar secreto”, “desfazer essa aparência”*, “quando as máscaras forem retiradas”, “despojar o objeto”*, “na mais ingênua nudez”* * (Genet, Jean. O ateliê de Giacometti. São Paulo: Cosac & Naify Edições, 2000: 12-13) * (: 11) * (: 12) * (: 94) 226 ALEA VOLUME 5 NÚMERO 2 JULHO – DEZEMBRO 2003 Mas o que está “por debaixo”, “atrás”, “além”, da aparência do mundo visível, que Genet tenta num primeiro momento opor ao segredo mais precioso do ser? Para ele, cuja obra já foi descrita como uma espécie de “enroscamento” em torno de um centro vazio, associada aos temas do luto e do desejo*, é provável que não se trate de um conteúdo pleno, nem de uma verdade no sentido “matemático” do termo, e talvez nem mesmo de uma “moral”, por mais perversa que ela fosse. O que subjaz ao visível é a solidão, ou seja, um certo sentimento do isola- mento, do vazio de tudo. E, no contexto da crítica de Genet, essa solidão é sentida não como miséria, mas como “glória”*, “realeza secreta”*, “majestade nua”, “preciosa”*. Se quisermos empregar aqui uma categoria oriunda da filo- sofia política, o que se justificaria pela reflexão sobre o tema da miséria, tal estado de solidão absoluta e de vazio é o mais democrático possível, pois ele representa “esse ponto precioso em que o ser humano seria devolvido ao que tem de mais irredutível: a solidão de ser exatamente igual a qualquer outro”*. A arte de Giacometti, que funciona para Genet como paradigma do trabalho da arte, de seu potencial libertador levado ao má- ximo, atinge esse patamar através da exaltação de seres e ob- jetos que toma dentre uma massa informe de coisas desva- lorizadas ou menosprezadas. Em Diário de um ladrão, Genet pratica essa exaltação de modo intensivo. Cito apenas alguns momentos desse tipo de operação: Tornados tão úteis para o conhecimento de nosso apequenamento quanto as jóias para o conhecimento do que se chama de triunfo, os piolhos eram preciosos. Tínhamos ao mesmo tempo vergonha e glória deles*. Num erotismo solitário a lepra se consola e canta seu mal. A miséria nos erigia. Através da Espanha, desfilávamos uma magnificência secreta, velada, sem arrogância*. Ao detido a prisão oferece o mesmo sentimento de segurança que um palácio real ao convidado de um rei*. “Arte” aqui é um processo de reapropriação do mundo, de reinterpretação dos dados do “dado”, do “vivido”, um processo de revaloração, que permite a tomada de posição e o redimen- sionamento do sujeito em face daquilo de que não se escapa, a realidade, a linguagem tomada como doxa, a violência, a exclu- * (Cf. Derrida, Jacques. Glas. Paris: Galilée, 1974) * (Genet, Jean. O ateliê de Giacometti. Op. cit.: 21) * (: 40) * (: 72) * (: 38) * (Genet, Jean. Journal du voleur. Paris: Gallimard, 1949: 28) * (: 29) * (: 29) 227 Paula Glenadel · O GIACOMETTI DE GENET são, a solidão, entre outros estados paroxísticos ou medíocres da miséria. A arte moderna vem trabalhando de modo drástico a clivagem entre a realidade e a arte. Assim, desde Baudelaire, pelo menos, tem sido possível trabalhar dissociando o belo do verdadeiro e do bom. Essa autonomia da arte representa prova- velmente uma conquista no sentido conceitual da estética, mas é logo captada por jogos do “mercado”, pois o que há de mais “real” ou “verdadeiro”, ou ainda “excelente” num certo sentido, do que o valor comercial de um objeto, fosse ele o mais radical dos objetos artísticos, o mais contestador da ordem mental ou social estabelecida? A análise de Genet não se prende a esse aspecto da arte, ele fala dentro de um universo tido como homogêneo, o das significações, da força, da beleza da obra de arte. No interior desse universo, a prática de Giacometti acaba por revelar a solidão de todos a partir da solidão dos mais evidentemente sós. A beleza da obra é o efeito de uma espécie de simbiose entre a solidão do artista e a solidão do ser ou da coisa esteti- zados. Há, contudo, diferentes modalidades de interação ou de identificação, ou ainda de apropriação, dependendo de como se queira designar o processo de estetização. Digo “simbiose”, embora pudesse também estar empregando o termo “para- sitismo”. Caberia discutir até que ponto a “intenção” de um artista é o que determina o tipo de estetização. Nesse sentido, interessantes são os casos trazidos por Genet para ilustrar a arte de Giacometti. Trata-se das putas dos bor- déis cujo desaparecimento Giacometti lamenta, do mendigo ára- be cego encontrado num café, da mendiga amiga de Giacometti, do velho do trem enfim – o único que transcreverei aqui, pelo teor da reflexão sobre a questão de uma espécie de “caridade” fundamental que propicia. É Genet quem conta: Há cerca de quatro anos, eu estava no trem. Diante de mim, no compartimento, estava sentado um velhinho horroroso. Sujo e manifestamente mau, algumas de suas reflexões o provaram. Recusando prosseguir uma conversa desagradável, tentei ler, mas involuntariamente olhava para aquele velhinho: ele era muito feio. Seu olhar, como se diz, cruzou com o meu e, se foi breve ou demo- rado, já não sei, mas conheci de súbito a dolorosa – sim, a dolorosa sensação de que qualquer homem ‘valia’ exatamente – desculpem, mas é ‘exatamente’ [o] que eu quero ressaltar – o mesmo que qualquer outro. ‘Qualquer um’, pensei, ‘pode ser amado apesar de sua feiúra, imbecilidade e malvadez’*. * (Genet, Jean. O ateliê de Giacometti. Op. cit.: 37) 228 ALEA VOLUME 5 NÚMERO 2 JULHO – DEZEMBRO 2003 O próprio Giacometti também é apresentado como um “pobre”, ou alguém que tivesse feito essa “opção”, se é que isso corresponde a uma: sujo, ocupando um ateliê caindo aos peda- ços, com grande simpatia pela poeira e pelos objetos velhos, feliz ao saber que mancaria após uma operação. Caberia nessa altura indagar o que é de quem aqui. A persona do artista acres- centa-se à sua obra ou à performance do crítico, ou seja, a sim- patia de Genet pelos marginais e desamparados condiciona seu entendimento de Giacometti, bem como a simpatia de Giacometti pelos miseráveis informa sua obra, embora não os tome dire- tamente por “modelos”. Já sabemos, portanto, algo – ou não sabemos quase nada – sobre o que é estetizado por Giacometti. Mas o que significa aqui estetizar? A série de termos relativos à estética vem do verbo grego que quer dizer sentir. Faz-se ouvir aqui, se quisermos prestar atenção em etimologias, gosto talvez duvidoso mas comandado por uma espécie de paixão filológica que talvez me interesse assumir, faz-se ouvir uma faculdade sensível, uma sensibilidade, que indica que o trabalho da arte procede por afetos. Uma importante questão para os afetos reside na oscilação entre proximidade e distância – justamente o aspecto que é levantado por Genet como um critério de valor para a apreciação da arte de Giacometti. Sobre certas estátuas dele, Genet diz: Também provocam em mim um curioso sentimento: são fami- liares, caminham na rua. Porém, estão no fundo dos tempos, na origem de tudo, aproximam-se e recuam sem cessar, numa imobi- lidade soberana. uploads/Litterature/ o-giacometti-de-genet-pdf.pdf

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