c e n a n. 29 A Dramaturgia no Tempo do “Pós-Dramático” Université Sorbonne Nou

c e n a n. 29 A Dramaturgia no Tempo do “Pós-Dramático” Université Sorbonne Nouvelle Paris 3, Paris, França E-mail: joseph.danan@wanadoo.fr Joseph Danan Resumo Résumé Palavras-chave Mots-clés Algo está transformando profundamente o teatro. Hans-Thies Lehmann teve o mérito de nomear esse fenômeno, propondo a no­ ção de “teatro pós-dramático” – mesmo que essa expressão seja discutível na medida em que essas novas formas não necessaria­ mente anulam o drama. O teatro do século XX se baseou no paradigma de uma “arte em dois momentos” (Henri Gouhier). O autor escreve uma peça, depois o diretor a pega e a monta. Essa é a utopia de Artaud, a de um “criador único”, que parece tomar forma nesse início do século XXI. A dramaturgia se encontra inevitavelmente afetada por essa evolução: obviamente, em seu primeiro sen­ tido, a arte de escrever uma peça, quando a escrita e a encenação ocorrem no mesmo movimento; mas também em seu sentido moderno, quando o termo se aplica à pas­ sagem para a cena de uma peça pre-exis­ tente. Entre a transformação de uma obra dramática em um material para a cena, sem levar em conta sua estrutura dramática, e a imposição de uma rígida “grade de leitura”, ainda deveria haver espaço para uma dra­ maturgia aberta e sensível, criando as con­ dições de uma experiência para o público. Quelque chose est en train de trans­ former en profondeur le théâtre. Hans- Thies Lehmann a eu le mérite de nommer ce phénomène en avançant la notion de “théâtre postdramatique” – même si cette ex­ pression est discutable dans la mesure où ces nouvelles formes n’annulent pas néces­ sairement le drame. Le théâtre du XXe siècle était basé sur le paradigme d’un “art à deux temps” (Henri Gouhier). L’auteur écrit une pièce, puis le metteur en scène s’en empare et la monte. C’est l’utopie d’Artaud, celle d’un “créateur unique”, qui semble prendre corps en ce début de XXIe siècle. La dramaturgie se trouve inévitablement affectée par cette évolution : évidemment, dans son premier sens, l’art d’écrire une pièce, lorsque l’écri- ture et la mise en scène se produisent dans le même mouvement ; mais aussi dans son sens moderne, lorsque le terme s’applique au passage à la scène d’une pièce préexis- tante. Entre la transformation d’une œuvre dramatique en matériau pour la scène, sans prendre en compte sa structure dramatique, et l’imposition d’une “grille de lecture” rigide, il devrait y avoir encore place pour une dra­ maturgie ouverte et sensible, créant les conditions d’une expérience pour le public. Dramaturgia. Dramaticidade. Escrita Dramática. Teatro “Pós-Dramático”. Performance. Experiência. Dramaturgie. Dramaticité. Ecriture Drama­ tique. Théâtre “Postdramatique”. Performance. Expérience. Universidade Federal do Rio Grande do Sul E-mail: clovisdmassa@gmail.com Tradução: Clóvis D. Massa c e n a n. 29 Danan // A Dramaturgia no Tempo do “Pós-Dramático” Revista Cena, Porto Alegre, nº 29, p. 14-23 set./dez. 2019 Disponível em: http://seer.ufrgs.br/cena 15 Algo está mudando, transformando profundamente o teatro e nossa relação com a cena. Um fenômeno de amplitude comparável no mínimo com o surgimento da encenação moderna no final do sécu­ lo XIX. Hans-Thies Lehmann teve o mérito de dar um nome a esse fenômeno, o “tea­ tro pós-dramático”, mesmo que esse nome seja questionável, porque o que nasce diante de nossos olhos não anula neces­ sariamente o drama, abrindo, ao contrá­ rio, a novas formas de dramaticidade que será necessário tentar identificar e nomear. Como caracterizar essa alteração? O teatro explodiu e ele está, é verdade, dis­ sociado do drama. Muitos espetáculos, hoje, não se baseiam em uma obra dramática prévia e, conseqüentemente, no gesto de quem a encena. Textos não dramáticos são recorrentes (textos narrativos e materiais va­ riados, de ensaios filosóficos ou científicos a cartões postais, de poema a documento jornalístico ou histórico), a escrita nasce do palco (assinada por uma pessoa ou um cole­ tivo), a interdisciplinaridade, que vê coexistir diferentes linguagens - o vídeo, a dança, a música ao vivo, o circo... –, fazendo do texto um material entre outros e removendo seu valor matricial (entendendo por isso: sua ca­ pacidade de estar na origem, mas também de gerar um número indefinido de encena­ ções). Mais profundamente, é a própria na­ tureza da representação que se encontra transformada. A influência, em particular, da arte da performance, abalou a mimese, que fundava o teatro ocidental desde Aristóteles. “O teatro é falso”, diz Marina Abra­ movic, “há uma caixa preta, você paga por um ingresso e olha para alguém que inter­ preta a vida de outra pessoa. A faca não é real, o sangue não é real e as emoções não são reais. A performance é exatamente o oposto: a faca é real, o sangue é real e as emoções são reais. É um conceito dife­ rente. Essa é a verdadeira realidade.”1 Ora, essa oposição, a cena contemporânea não deixa de colocar em jogo, procurando não o efeito de real (a ilusão), mas o efeito real. A representação irá então opor com vontade a “presentificação”2, valorizando todo o seu peso e valor ao presente do ato teatral, na presença. Isso significa: uma cena teatral existente por si mesma, no aqui e agora da representação (ou da presentificação), sem procurar criar um outro lugar (outro lugar, outro tempo). O ator também está à nossa frente por si mesmo: um performer que, em casos cada vez mais frequentes, anula qual­ quer efeito de personagem. “Esses palcos não mostram o mundo. Eles fazem parte do mundo. Esses palcos estão lá simples­ mente para nos transportar [...] Você não vê um cenário imitando outra cenário [...] O tempo que você vive não imita outra tem­ po” (HANDKE, 1968, p. 22): o “teatro sem ilusão”3, o teatro sem a mimese, é isso em direção ao que parece tender a criação cê­ nica contemporânea, desde o manifesto de Peter Handke, Insulto ao Público (1966), onde, no lugar dos personagens, “quatro atores” compartilham uma fala não indicada. Eu vejo em uma sequência do Inferno de Romeu Castellucci4 o emblema deste teatro. Seres que não são personagens e menos ainda atores (junto aos poucos ato­ res misturam dançarinos, crianças e muitos figurantes) avançam um após o outro para o público e passam a oferecer seus ros­ 3 Cf. Christian Biet et Pierre Frantz, “Le théâtre sans l’illusion”, Critique, n° 699-700, août-septembre 2005. 2 Cf. Jean-Frédéric Chevallier, “Le geste théâtral contemporain : entre présentation et symboles”, L’Annuaire théâtral. Revue qué­ bécoise d’études théâtrales, n° 36, automne 2004 ; e “Le geste théâtral contemporain”, Frictions, n° 10, automne-hiver 2006. (No original, présentation. N. do trad.) 1 Citado por Jacques Magnol, na ocasião da exibição-perfor­ mance “Marina Abramovic: The Artist is Present”, New York, Museum of Modern Art, march-april 2010. 4 Festival d’Avignon, Cour d’honneur du Palais des Papes, 2008. c e n a n. 29 Danan // A Dramaturgia no Tempo do “Pós-Dramático” Revista Cena, Porto Alegre, nº 29, p. 14-23 set./dez. 2019 Disponível em: http://seer.ufrgs.br/cena 16 tos e seus corpos. Desenho de um teatro de apresentação e presença, onde nada é representado, nada além dessa amostra da humanidade se apresentando em cena - pela metonímia, se você preferir, da huma­ nidade.5 Pois esses teatros não excluem nem o símbolo nem a metáfora, mas es­ ses são secundários, frutos de uma elabo­ ração posterior pelo espectador, tomados sobretudo pelo poder do momento presen­ te. Não é um símbolo de “proposição deli­ berada”, como diz Maeterlinck, ao qual se opõe a um símbolo que “ocorreria sem o conhecimento do poeta e [...] quase sempre iria muito além de seu pensamento”. “Não acredito”, ele diz novamente, “que o traba­ lho possa nascer do símbolo; mas o sím­ bolo sempre nasce da obra se for viável”. (MAETERLINCK in HURET, 1982, p. 123) Havia, no Inferno, outra sequência em­ blemática: no início do espetáculo, Castelluci vinha ao proscênio, emitia aos espectadores “Eu me chamo Romeo Castellucci”, antes de ser equipado com um cinto de proteção e se entregar a cães treinados que o atacavam e o jogavam no chão. Na sequência seguin­ te, um acrobata escalava a fachada do Pa­ lácio dos Papas, em Avignon, para o Pátio Nobre do qual o espetáculo foi concebido. O ataque dos cães era real, Castellucci não interpretava um personagem, e a escalada da fachada do Palácio dos Papas era uma ação real, realizada em tempo real, incom­ pressível. A densidade do real dessas duas ações saturava o espaço-tempo da repre­ sentação, não deixando entrever nada além do que elas mesmas, em sua realização. No mesmo espetáculo, um cubo de vi­ dro deixava crianças brincando umas com as outras como em uma creche, sem per­ ceber o olhar dos espectadores, e era como um fragmento retirado do mundo real, sem a interposição do signo, e colocado como tal em cena pelo jogo de uma colagem. Poder do momento. Poder do real em estado bruto. Poder do vivo, do “ator que não repete o mesmo gesto duas vezes”. (ARTAUD, 1964, p. 18) Esta é a utopia de Artaud que parece querer encarnar no início do século XXI em programas uploads/Litterature/ dramaturgia-no-tempo-do-pos-dramatico 1 .pdf

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